No bioma amazônico existem pelo menos 600 mil títulos de terra não regularizados| Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil
Ouça este conteúdo

Há anos se discute no Congresso a aprovação de medidas que modernizem a Lei 11.952/2009 e substituam a Medida Provisória 910/2019, que caducou, e que tratava das regras para regularização fundiária de terras da União e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

CARREGANDO :)

Nessa briga, um dos lados classifica qualquer mudança na lei como “projeto da grilagem” e mal aceita discutir o tema. No outro extremo, há os que se interessam em facilitar o afrouxamento das regras para, assim, se apropriarem de terras públicas. Enquanto isso, no meio do cabo de guerra ficam centenas de milhares de brasileiros que não conseguem formalizar a posse da terra em que já estão estabelecidos há décadas, e, em muitos casos, por incentivo do próprio governo.

Dentre 600 mil títulos estimados pelo governo para a região, 147 mil podem ser concedidos sem necessidade de visita de um técnico do Incra, apenas com sensoriamento remoto, já que possuem até 4 módulos fiscais. Desse montante, 93% já estão nos imóveis pelo menos desde 2008, que é o marco legal das ocupações que podem ser regularizadas. São famílias que por não terem escritura da terra, não conseguem acesso a linhas de crédito oficiais nem podem dar as propriedades como garantia para financiar a expansão de seus negócios.

Publicidade

Richard Torsiano, ex-diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária do Incra, consultor de assuntos fundiários e professor da Escola Nacional da Magistratura, é enfático: “o governo incentivou a colonização da Amazônia e depois abandonou essa gente, na década de 80”.

Mais de 100 mil processos aguardam decisão do Incra

“Muitos foram para lá por iniciativa do Estado. Depois disso, só houve alguma assistência em 2009, com o programa Amazônia Legal. A partir daí o terreno foi preparado, com o georreferenciamento das terras públicas, o cadastro das famílias, a definição de normas internas e metodologias de se aplicar o trabalho de campo. Já há milhões de hectares georreferenciados, e mais de 100 mil processos nos escaninhos do Incra, de agricultores familiares, aguardando uma definição. A partir de 2015, no entanto, o Incra foi escanteado. É só ver os resultados, não existe um número razoável de títulos expedidos”, aponta Torsiano, que coordenou, no Incra, a formulação do Programa Terra Legal para regularização fundiária na Amazônia, lançado em 2009.

A regularização de terras da União é diferente do processo de regularização da propriedade de assentados da Reforma Agrária, outro tema que não interessa ao PT e aos movimentos sociais, como o MST, e que foi acelerado no governo do presidente Jair Bolsonaro. O problema da regularização fundiária é mais agudo no território da chamada Amazônia Legal, nas terras públicas federais não destinadas, ou seja, para além das reservas indígenas, assentamentos, unidades de conservação e terras públicas estaduais.

Richard Torsiano fala em audiência do Senado, em 2015, sobre a regularização de títulos de propriedade na região amazônica| Foto: Agência Senado

A Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) estima que dos 50 milhões de hectares de áreas públicas não destinadas na Amazônia (10% do total), cerca de 25 milhões envolvem famílias que aguardam regularização. Não quer dizer que essa área toda passará à exploração agrícola. "A Amazônia tem cerca de 500 milhões de hectares. A gente fala em regularizar 5% disso. Só que lá tem 80% de preservação. Estamos falando de 1% a 1,2% da área, com uso consolidado, levantamento prévio do Incra, e com pessoas que já estão lá produzindo há algum tempo. Com a regularização o produtor passará a ter acesso ao crédito, ao seguro rural, à assistência técnica e a novas tecnologias de baixo carbono. É para ele entrar na legalidade, para não desmatar sem saber, porque não tem assistência técnica", diz José Henrique Pereira, assessor técnico da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da CNA.

Publicidade

Em muitas áreas não regularizadas, persiste uma zona cinzenta, de insegurança jurídica, em que a ausência do Estado e do ordenamento da posse da terra favorece a ação, por vezes violenta, de grileiros e invasores. O deputado Sergio Souza, presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), diz que é “dever de casa” proibir e punir quem comete o crime do desmatamento ilegal. No entanto, enquanto não for feita a regularização fundiária, diz ele, não é possível identificar quem faz supressão de vegetação de forma ilegal ou legal. No Pará, um dos estados maior desafios de regularização, houve avanços nas terras estaduais. Nos últimos quatro anos foram emitidos mais de 11 mil títulos, contra 1.167 do governo anterior. Nas glebas federais, o ritmo é lento.

Estado já detém tecnologia para vistorias por satélite

O ex-dirigente do Incra, Torsiano, não entende que seja indispensável uma modernização da lei para avançar na resolução do problemas fundiários. Grande parte do trabalho, inclusive, já teria sido feita.

“Hoje já é possível acompanhar o uso e a ocupação de terras no Brasil, com imagens de satélite de alta definição, num espaço de no máximo três dias. É preciso descentralizar e fortalecer alguns municípios para fiscalizar o processo de ocupação irregular. Uma parte dessas áreas já está em processo de regularização. Quanto ao excedente, o Estado já tem capacidade e tecnologia para colocar uma estrutura mais robusta, para fiscalizar e dar destinação adequada, e não apenas deixar para o Deus-dará”, diz Torsiano.

Trata-se, assim, de uma questão que precisaria mais de esforço administrativo do que legislativo para ser resolvida. “Os problemas estão na burocracia interna do Incra. Uma força-tarefa, com capacidade orçamentária, poderia resolver esses processos que já estão parados há anos. O produtor fica esterilizado na possibilidade de utilização de seu imóvel. É um prejuízo para o desenvolvimento socioeconômico de toda uma região”, pontua Torsiano.

Colheita de laranja em pomar no bioma amazônico| Foto: Michel Mello / IDAM
Publicidade

Força-tarefa poderia resolver regularização fundiária em dois anos

A mesma ideia de força-tarefa para atacar o problema é defendida pelo deputado federal Zé Silva (PSD-MG), engenheiro-agrônomo extensionista e ex-presidente da Emater em Minas Gerais. “Eu levei essa proposta para o Mourão (vice-presidente da República), junto com o deputado Marcelo Ramos (Solidariedade-AM). A Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão rural (Anater) poderia credenciar mil engenheiros-agrônomos e agrimensores, fazer uma força-tarefa técnica para essa regularização. Os técnicos resolveriam isso em dois anos”, assegura.

Há pouco mais de um ano o deputado Zé Silva teve seu projeto de regularização fundiária aprovado na Câmara (PL 2.633/2020), mas não avançou no Senado. Desde sempre, foi rotulado pela esquerda como PL da Grilagem, por aumentar de 4 para 6 módulos fiscais o tamanho da propriedade ocupada que poderia ser regularizada com dispensa de vistoria pelo Incra. Cada módulo fiscal varia de 5 a 110 hectares, conforme a região do país. Pelo seu projeto, diz o deputado, seriam atendidos 92% dos requerimentos que estão no Incra, correspondentes a 47% da área total. “Os outros 8% têm 53% das áreas. São megapropriedades, acima de seis módulos. Nesses estou obrigando o pessoal do Incra a ir pessoalmente. Deixa de ser a MP da Grilagem e vira política de Estado. Estou sendo duro com a turma”, assegura o parlamentar.

No Senado, o projeto de Zé Silva acabou incorporado a outras iniciativas e seus principais pontos teriam sido desvirtuados. Uma questão fundamental, segundo Silva, seria manter o ano de 2008 como marco temporal de ocupação das terras, como diz o Código Florestal, e não estender o prazo para 2018, como previa a MP, ou para 2014, como pretendia o PL 510/2021 do senador Irajá Silvestre filho (PSD/TO), ou ainda 2012, data sugerida pelo relator do PL 510/2021, senador Carlos Fávaro (PSD-MT). “O recado que era dado para o mundo era de que você poderia ocupar e, de tempos em tempos, o Congresso faria uma atualização e te regularizaria. Eu discordei totalmente da MP e do relatório. Não adianta você invadir mais terra porque você não será regularizado”, aponta Silva.

Produtor de cacau no bioma amazônico| Foto: IDAM / Divulgação

Projeto da Câmara tinha travas anti-grilagem

Em seu projeto, Zé Silva havia retirado o direito de preferência na licitação do governo para aqueles que ocuparam a terra após o marco temporal. E nos casos em que a regularização pudesse ser feita por via remota, haveria várias travas. “São 11 quesitos. É preciso ter o CAR ativo; a planta assinada por engenheiro ou agrimensor; não pode ser proprietário de outro imóvel, não pode ser invasão de terra; não pode ser funcionário público, tem que cumprir o marco temporal; tem que ter ocupado a terra como manda o Código Florestal; não pode ter nenhuma denúncia de trabalho escravo; não pode ter multa ambiental; não pode ter fracionamento da terra; não pode ter nenhum conflito na junta agrária do Incra. E também joguei ele no Código Penal. Se falar mentira, é punido penalmente”. Com essas exigências, diz Silva, “eu garanto que não é lei da grilagem”.

Publicidade

A reportagem fez contato com a assessoria dos senadores Irajá Silvestre Filho e Carlos Fávaro para tratar do projeto em análise no Senado, mas não houve retorno.

O fato de o Parlamento não ter aprovado ainda uma nova lei não deveria ser empecilho para se avançar na regularização fundiária em terras da União. O ex-dirigente do Incra Richard Torsino insiste que é possível, dentro das regras vigentes, fazer a regularização em propriedades de até 2.500 hectares, que é o limite constitucional. E também dá para regularizar a maioria dos produtores dispensando a vistoria pessoal a campo.

Lei atual já prevê vistoria remota para pequenos

O deputado Zé Silva concorda: "com a lei atual, o governo consegue regularizar com vistoria remota 70% dos imóveis que têm até 1 módulo fiscal". "Minha proposta é fazer a regularização fundiária e ambiental. Hoje, segundo nota técnica de professores da PUC-RJ e da UFMG, 98% dos agricultores representam aproximadamente 3% das queimadas na Amazônia. Esses queimam uma área pequenininha, para não morrer de fome. Esses eu defendo no meu projeto. Se o governo quiser, é só mandar o Incra, fazer a regularização fundiária, ambiental e dar assistência técnica. Os outros 2%, que representam 97% das queimadas, é a polícia e o exército que têm que cuidar. É preciso separar o joio do trigo".

Para fazer a fila da regularização fundiária andar, existiria, no entanto, um problema central que não será resolvido por nenhum projeto de lei, mas por eficiência da máquina administrativa. "O diabo mora nos detalhes. Você tem títulos antigos que foram expedidos pelo Incra dentro de uma área pública federal gigantesca. O servidor público quando tem um processo novo de regularização fundiária, dentro dessa mesma área, ele se sente receoso e muito inseguro de avançar na regularização fundiária dessa nova área, porque pode estar incidindo na expedição de um título sobre outro, que já foi expedido no passado. E isso tem gerado análises, reanálises, burocracia. Se tem oportunidade de aprofundar essa discussão nesse momento, vamos fazer em cima das coisas que de fato estão travando esses processos. E essa questão dos títulos antigos é uma delas. Se isso não for revisto e resolvido, a burocracia vai continuar atravancando os processos”, sublinha Torsiano.

Sem a regularização fundiária, será difícil pacificar a questão ambiental. André Pessoa, engenheiro-agrônomo sócio-diretor da Agroconsult, em entrevista à Gazeta do Povo comparou a situação atual às sesmarias, de quando o Brasil ainda era governado pelo rei de Portugal. “A mãe da irregularidade ambiental é a falta de regularidade fundiária. Os proprietários rurais não têm escritura e não conseguem levar aos cartórios de registros de imóveis as suas posses porque as demarcações das datas, que são as áreas administrativas, não foram concluídas pelo Judiciário, ou sequer foram feitas no passado pelos institutos de terra de cada estado. E como se nós estivéssemos nas sesmarias ainda”, enfatiza.

Publicidade

O Incra foi procurado para comentar as críticas à burocracia no processo de regularização fundiária, mas, até o fechamento da reportagem, não houve retorno. O espaço continua aberto.