A partir de 2027, maior parte das aeronaves não poderá decolar em voos internacionais sem mistura mínima de SAF| Foto: Andy_Bay / Pixabay
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O governo brasileiro comemorou neste mês a abertura do mercado de exportação de óleo de cozinha usado para os Estados Unidos. Os clientes são os fabricantes de biocombustíveis, os mesmos que têm vindo ao país buscar sebo bovino, cujas vendas cresceram 377% no primeiro quadrimestre do ano.

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Incentivadas por incentivos governamentais para descarbonização, as indústrias americanas buscam no exterior ingredientes mais baratos do que a soja para produzir combustíveis renováveis. Os europeus seguem a mesma receita, e estão rapidamente esgotando as disponibilidades de óleo de cozinha usado (UCO, da sigla em inglês).

Essa exportação de óleo de cozinha e sebo já traz efeitos colaterais na indústria de limpeza. “Para o segmento de sabão é ruim, o efeito a curto prazo é um preço maior e uma pulverização desse produto. A gente costuma falar que o sebo agora é uma noiva cortejada por três pretendentes - saneantes, biodiesel e exportação – além do tradicional mercado de rações”, diz Marcio Brito, presidente da Associação Brasileira de Produtos de Higiene e Limpeza (Abisa).

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Outro produto brasileiro que têm se destacado nos embarques recentes para os EUA, mas com ticket mais alto, é o etanol de segunda geração. Trata-se do combustível obtido dos rejeitos da cana, com baixa pegada de carbono e certificado para produção do combustível renovável de aviação (SAF). Não existe etanol em outro lugar do mundo com índices tão próximos de zero carbono.

Pesquisador defende estratégia de produção de SAF dentro do país

Esse diferencial faz do combustível brasileiro a principal matéria-prima da primeira usina de SAF à base de etanol, inaugurada no início deste ano na Georgia (EUA). O etanol americano ainda não tem nível de redução de emissões suficiente para fazer jus aos subsídios do governo para descarbonização, e pode levar anos até que consiga quebrar a barreira. A saída tem sido fazer um mix com o produto brasileiro.

Apesar de internalizarem dólares, essas exportações de matérias-primas são vistas com ressalva por Gonçalo Pereira, coordenador do Laboratório de Genômica e Bioenergia da Unicamp, um dos principais pesquisadores de biocombustíveis do país. Para ele, é estratégico que se crie uma nova cadeia industrial de SAF dentro do território nacional, devido ao potencial de geração de renda e emprego.

“A gente precisa de uma política pública. Os EUA são um dos países mais protecionistas do mundo, só que eles têm outra estratégia de proteção.  Eles enfiam dinheiro até não poder mais para que façam o que eles querem. O Brasil, via BNDES, tem que desenvolver programas para que a gente produza SAF aqui”, defende.

Todos aguardam aprovação do PL do Combustível Legal

Somente o crédito, contudo, não seria suficiente. Empresários e analistas do setor de renováveis dizem que é fundamental a implementação do PL do Combustível Legal, aprovado na Câmara e sob análise do Senado. Daria segurança jurídica e demanda sustentada para o setor crescer, com mistura mandatória de etanol à gasolina de até 35%; adição de 1% de biometano ao gás natural a partir de 2026; mistura de até 25% biodiesel ao óleo diesel; e uso de SAF misturado ao querosene fóssil em até 10%, crescendo 1% ao ano a partir de 2027.

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Resta, também, o desafio de certificar a sustentabilidade das matérias-primas brasileiras: “Não basta ser verde, a gente precisa provar que nosso combustível é sustentável”, diz o presidente da refinaria Riograndense (antiga Ipiranga), Felipe Jorge, que está à frente da construção de uma biorrefinaria de quase US$ 1 bilhão para produzir SAF a partir de sebo bovino e óleos vegetais em Rio Grande (RS). A previsão é que a unidade, que tem como sócios Petrobras, Ultra e Braskem, comece a funcionar no final de 2026.

Esmagamento de soja deve ganhar impulso no país com novas demandas, para biodiesel e para SAF| Foto: Michel Willian/

País deve evitar armadilha de apenas exportar matéria-prima

Jorge aponta ainda a necessidade de financiamentos competitivos, porque a disputa por plantas de SAF é mundial e cada unidade exige centenas de milhões de dólares. “A financiabilidade desses projetos é muito relevante, temos que discutir muito bem e o governo e o BNDES têm olhado para isso”, observa.

“Temos uma expertise, uma história no biocombustível que é muito rica, bonita e valiosa. O que precisamos fazer hoje é criar um ambiente no Brasil para que os investimentos gerem unidades aqui dentro. Se não, pode ocorrer de novo aquela situação que não toleramos mais, que é o Brasil ser um grande exportador de insumos, de matérias-primas para gerar riqueza, renda e emprego lá fora”, assinala Felipe Jorge.

Somente a nova biorrefinaria de Rio Grande vai transformar em SAF um milhão de toneladas de óleos vegetais e gorduras por ano. A soja será o carro-chefe, mas a unidade deve usar sebo bovino e outros óleos, como de canola, uma opção atrativa para os agricultores cultivarem no inverno.

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Demanda por SAF pode impulsionar esmagamento de soja

A demanda por óleos vegetais deve aumentar tanto nos próximos anos, prevê Jorge, que pode haver uma mudança estrutural no agro brasileiro, com diminuição da exportação de grãos e aumento da industrialização local. “Será uma oportunidade para as empresas que esmagam soja no país aumentarem sua capacidade”, assegura. Em linha com essa análise, o próprio presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) , André Nasser, reconheceu que o fator mais forte para novos avanços da soja no Brasil tende a não ser mais a China, mas o biocombustível.

Cada nova biorrefinaria tem potencial de reter milhões de toneladas de soja para processamento local. Se a futura refinaria gaúcha fosse operar apenas com a leguminosa, consumiria sozinha 5 milhões de toneladas anuais. A localização estratégica, perto da Argentina, maior exportadora mundial de óleo de soja, ajuda a garantir o suprimento do insumo básico.

Em médio prazo, outra demanda certa de soja virá de uma refinaria de macaúba (espécie de palmeira), que está sendo implantada em Camaçari (BA). A empresa Acelen, do fundo Mubadala, dos Emirados Árabes Unidos, investe cerca de R$ 15 bilhões no projeto que usará áreas degradadas para produzir 1 bilhão de litros de diesel verde e querosene de aviação sustentável por ano. Em termos comparativos, esse volume, se fosse de diesel, daria para movimentar uma frota de mais de um milhão de veículos por ano.

Macaúba é opção bilionária dos árabes para produção de SAF no Brasil

Enquanto os 200 mil hectares de macaúba não entrarem em produção, o que leva de 3 a 3,5 anos, a unidade funcionará movida a óleo de soja. E consumirá neste período o equivalente a todo o óleo de soja exportado anualmente pelo país, cerca de 2,3 milhões de toneladas.

Mudas de macaúba que vão ser cultivadas em projeto da Acelen em Minas Gerais e Bahia| Foto: Divulgação / Acelen Renováveis
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O foco da Acelen, contudo, é a macaúba, que rende até sete vezes mais óleo por hectare do que a soja. “Serão gerados 90 mil empregos ao longo de dez anos. A gente investe de R$ 12 bilhões a R$ 14 bilhões, mas o efeito econômico é de R$ 87 bilhões na cadeia produtiva. E 20% da produção de macaúba será em parceria com pequenos produtores”, destaca Marcelo Lyra, vice-presidente de Relações Institucionais e Comunicação da Acelen.

Para demonstrar que os árabes levam o projeto a sério, Lyra acrescenta que já há planos para replicar o módulo de cultivo de macaúba de 200 mil para 1 milhão de hectares. Tudo em cima de pastagens degradadas do norte de Minas Gerais e parte da Bahia.

O temor de Gonçalo Pereira, da Unicamp, é que pipoquem algumas unidades produtivas de SAF pelo país, mas o grosso da matéria-prima brasileira acabe sendo enviada para o exterior, numa situação em que os concorrentes “faturam com a sustentabilidade alheia”.

Raízen não deve ficar de fora da produção de SAF

Esse risco é muito pequeno, na avaliação de Raphael Nascimento, diretor de Novos Negócios da Raízen, maior produtora global de etanol de cana-de-açúcar, que enviou os primeiros embarques de etanol de segunda geração para produção de SAF nos EUA.

Apesar de não haver um “investimento aprovado que possa divulgar” em SAF, Nascimento assegura que a Raízen não quer se limitar ao mero fornecimento de matéria-prima. “Faz sentido pra gente olhar a cadeia de valor inteiro até o produto final e se posicionar. Então, não devemos ficar apenas como um fornecedor de álcool para nossos clientes”, assegura.

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“O mundo polui menos quando o Brasil produz. Você economiza milhares de navios rodando à toa. No final do dia, o fundamento deve prevalecer. A produção próxima do álcool é mais eficiente do que no destino. É muito difícil o cenário onde o Brasil não produza nada de SAF, porque é um contrassenso técnico, um contrassenso econômico. Mas é fato que precisamos continuar trabalhando para resolver todos os elementos da equação, que são financiabilidade, estabilidade regulatória e incentivos para empreender”, diz Nascimento.

SAF de etanol ainda é caro, diz analista da McKinsey

Para o sócio da consultoria McKinsey em Minas Gerais Henrique Ceotto, é natural que em curto-médio prazo o Brasil siga exportando etanol de segunda geração para produzir SAF nos Estados Unidos, até que a rota tecnológica se torne mais viável economicamente. Ele sublinha que a rota conhecida como alcohol-to-jet (ATJ) “é mais cara e só está ficando em pé nos Estados Unidos por causa dos incentivos do pacote Inflation Reduction Act (IRA)”.

Cana-de-açúcar brasileira é uma das matérias-primas com menor pegada de carbono para produção de combustível de aviação| Foto: Jonathan Campos / Arquivo Gazeta do Povo

Já a exportação de sebo bovino e óleos vegetais para produção de SAF pode estar com os dias contados, também por uma questão econômico-financeira. “O etanol é um líquido de alta densidade energética, mas para todas as outras rotas é ineficiente transportar a matéria-prima de baixa densidade para converter no local de consumo”, aponta Ceotto.

O analista prevê impacto positivo da demanda por SAF na cadeia de soja, mas em menor escala. Ele sublinha que diversos países europeus não permitem o uso matérias-primas comestíveis, como óleo de soja, para produção de SAF. “Pode haver um aumento da demanda num primeiro momento, mas o que você vai ver é uma migração desse esmagamento para culturas energéticas focadas, como é o caso da macaúba, que pode ser produzida através de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta, e restaurando o pasto degradado”, assegura.

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SAF é oportunidade difícil de ser perdida

Se a demanda por SAF será atendida por cana-de-açúcar, soja, macaúba, milho, óleo de palma, sorgo ou outras culturas, o fato é que o país dispõe de 40 milhões de hectares de pastagens degradadas que poderão ser convertidas para cultivo, sem esbarrar em nenhuma barreira ecológica ou de antidesmatamento de outros países. “O Brasil vai ter um papel importante, sim, e será um dos maiores produtores desse mercado que é subofertado. Essa é uma grande oportunidade”, diz.

Dentre as tarefas de casa, estariam a regulamentação da medição das emissões, contemplada pelo PL do Combustível do Futuro, e a adaptação da infraestrutura para o país ser exportador de SAF, o que inclui investimentos em terminais de combustíveis, portos e ferrovias.

“E você precisa ativar a demanda com garantias, que é um instrumento muito poderoso e o Brasil sabe fazer bem. Foi o que fizemos há 15 anos com as energias eólica e solar, que custavam um pouco mais caro, mas hoje são as fontes mais baratas que temos, quase metade da energia hidráulica”, assegura Ceotto, acrescentando que a experiência do BNDES na estruturação de uma cadeia produtiva poderia ser replicada para o SAF, “para tirar esses projetos do chão”.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]