Não estranhe se nunca ouviu falar do território do Sealba. Trata-se de um acrônimo criado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a partir das siglas de Sergipe, Alagoas e Bahia, que corresponde a uma delimitação geográfica envolvendo um conjunto de 171 municípios contíguos que abrigam condições de solo e clima propícios para a produção agrícola, principalmente de grãos. Não está errado chamar o Sealba de novíssima fronteira agrícola brasileira.
O conceito do Sealba foi proposto formalmente em 2019 pelo Núcleo de Inteligência Territorial da Embrapa Tabuleiros Costeiros, em Sergipe. O Sealba se encontra numa faixa de platôs (tabuleiros costeiros) próxima do Litoral brasileiro e que alcança sete dos nove estados nordestinos, da Bahia ao Ceará, ficando de fora somente o Maranhão e o Piauí.
O principal critério para delimitar a região foi a ocorrência histórica de chuvas em volumes iguais ou superiores a 450 mm, de abril a setembro, o que viabiliza o cultivo de grãos. Atualmente o milho e o feijão se destacam, mas vêm aumentando as áreas de soja, principalmente em Alagoas, onde a leguminosa entra para rotação de cultura, na renovação dos canaviais. Alguns produtores também testam variedades do chamado “trigo tropical”, outros avançam com a introdução do sistema de integração-lavoura-pecuária-floresta (ILPF) e há ainda o cultivo de frutas, legumes e tubérculos.
Plantio segue o calendário do hemisfério Norte
No mercado de grãos, o fato de a época de plantio corresponder à do hemisfério Norte cria algumas vantagens competitivas, como a possibilidade de aluguel do maquinário ocioso de regiões vizinhas e de formação de um polo de produção de sementes para o restante do país.
“Aqui a gente produz de abril a outubro, num ciclo de cultivo complementar ao resto do país. Se produzir soja padrão para sementes, isso tem um valor agregado muito maior do que a venda da soja como grão. A semente fresca faz diferença, tem vigor germinativo forte quando utilizada logo depois de colhida”, enfatiza Marcelo Fernandes, pesquisador da Embrapa Tabuleiros Costeiros.
A criação do “mapa do Sealba” seguiu o modelo de pesquisa e desenvolvimento que delimitou em 2015 outra região de alta vocação agrícola, no cerrado do Nordeste, ainda desconhecida de muitos brasileiros, o Matopiba – junção das iniciais de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. A Bahia entra nas duas delimitações geográficas com áreas distintas: o oeste do estado “pertence” ao Matopiba enquanto o nordeste está no mapa do Sealba.
Os mapas de aptidão agrícola seguem uma lógica própria, que não necessariamente coincide com as regiões político-administrativas, que dividem o país em municípios e estados. Dentre as tarefas dos pesquisadores está a sistematização e o cruzamento de dados de vários ministérios e órgãos públicos, como IBGE e Conab, para construir conceitos semelhantes aos do Matopiba e do Sealba.
Áreas compartilham problemas e potenciais
Enxergar áreas com características de clima, solos, bacias hidrográficas e relevos comuns é apontada pelos técnicos como fundamental para estruturar políticas públicas assertivas, apoiadas em programas de pesquisa, desenvolvimento e inovação. Para delimitar o Matopiba e o Sealba também foram consideradas, além das características naturais, as questões fundiárias, o perfil da agropecuária, a infraestrutura e as condições socioeconômicas locais.
"Nós juntamos esse quebra-cabeça para ter o melhor diagnóstico possível do território, identificando áreas que são equiproblemáticas, ou seja, que compartilham problemas em conjunto, mas que são também equipotenciais, onde as mesmas políticas públicas, as mesmas ações de transferência de tecnologia e de pesquisa podem subsidiar um desenvolvimento sustentável", enfatiza Gustavo Spadotti, chefe-geral da Embrapa Territorial, com sede em Campinas.
Uma diferença significativa entre o Matopiba e o Sealba está na dimensão das terras agricultáveis.
No Matopiba, que responde por 11% da produção brasileira de grãos, já são cultivados 9,1 milhões de hectares – podendo chegar até 13,6 milhões nos próximos dez anos, segundo o estudo Projeções do Agronegócio 2022/23 a 2032/33, do Ministério da Agricultura.
No Sealba, a área delimitada total é bem menor, de 5 milhões de hectares, sendo 2 milhões propícios para o cultivo de grãos – o que representa uma área equivalente ao tamanho de Israel.
Sealba concentra pequenas e médias propriedades
Apesar de vizinhas, as duas regiões geográficas seguem modelos bem distintos de expansão agrícola. No Matopiba, a ocupação foi intensificada no início dos anos 2000 por produtores do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, capitaneados pelos gaúchos.
Devido às dificuldades logísticas, com estradas ruins e longas distâncias dos portos, predomina ali a agricultura em grande escala, e as fazendas podem facilmente ter mais de 10 mil hectares. A densidade populacional também é baixa. São cerca de seis milhões de habitantes para uma área total de 73 milhões de hectares.
No Sealba, o desenho fundiário é outro. Há um adensamento populacional significativo, e em 5 milhões de hectares vivem atualmente 5 milhões de pessoas, com baixos índices de desenvolvimento social e econômico.
“Somos uma nova fronteira, mas não acreditamos na gauchada vindo para cá, porque são áreas pequenas. É difícil você conseguir aqui concentração de uma grande área, que é o que viabiliza a vinda de investidores de outras regiões do país para grãos”, observa Dênio Augusto Leite, superintendente da Federação da Agricultura de Sergipe (Faese), que organiza há dois anos o Sealba Show, que se transformou rapidamente numa das três maiores feiras nordestinas em volume de negócios.
Os atrativos para empresários forasteiros estariam, sobretudo, na fruticultura, que não exige grandes áreas e encontra condições climáticas altamente favoráveis no Sealba. Em Alagoas, onde a cana-de-açúcar tem tradição de centenas de anos, os usineiros estão descobrindo agora que a soja pode ser uma companhia bem-vinda.
Usineiros veem soja como aliada, não mais inimiga
"Até um tempo atrás as usinas não queriam que a soja entrasse. A única coisa que eles tinham medo era a soja. Agora estão vendo que fazer rotação com a soja melhora muito a cana", relata Everaldo Tenório, um dos pioneiros no cultivo da leguminosa no Sealba.
Para Tenório, não faz sentido o temor de alguns em relação a uma suposta monocultura da soja. Uma das virtudes da leguminosa é se dar bem associada a outros cultivos. "Dá muito certo a rotação da cana com a soja. Não acredito que vá crescer muito, mas também não acaba mais", prevê.
Tenório acredita, ainda, que o Nordeste será a nova fronteira agrícola do país. "Com esse governo batendo muito no Cerrado e na Amazônia, a tendência é o Nordeste ficar mais tranquilo. São áreas já ocupadas pelo boi que vão dar lugar à agricultura", prevê.
O zoneamento agrícola já contempla as novas possibilidades de cultivo, mas, segundo Leite, da Faese, ainda falta mais envolvimento dos órgãos oficiais. "Foi importante delimitar o Sealba. Contudo, ainda não conseguimos nossos objetivos de ter políticas públicas para a região. Precisamos avançar na disponibilidade de recursos do crédito rural", sublinha.
O fato é que a confirmação do potencial agrícola dos municípios “sealbenses” pelas pesquisas da Embrapa causa efervescência em terras que muitos, por muito tempo, acreditavam destinadas ao subaproveitamento. Isso já causa preocupação com o que seria uma “reforma agrária invertida”.
Reforma agrária às avessas
“Ao invés de pegar uma grande propriedade e dividir em pequenas, aqui você pega pequenas e transforma em maiores. Quando a gente vai analisar os dados do crédito rural, estamos percebendo uma concentração de terras nas mãos de poucas pessoas. Talvez o pequeno não esteja mais economicamente viável, ele arrenda ou vende a propriedade. Tem arrendamento para grãos, para cana e pecuária”, observa Leite, da Faese.
A Embrapa Tabuleiros já desenvolveu 15 variedades de soja adaptadas para o clima do Sealba e com produtividades equivalentes às da região Sul. Um desafio é identificar cultivares resistentes aos veranicos (pequenos períodos de calor intenso e sem chuva), que podem comprometer o desenvolvimento das plantas.
O plantio direto sobre a palha tem sido um aliado, já que ajuda a reter a umidade e também favorece que as raízes perfurem uma camada mais dura próxima à superfície. Quando da delimitação geográfica, o estudo da Embrapa apontou a existência de 875 mil hectares em áreas de pastagens degradadas aptas para conversão às atividades agrícolas.
Enquanto em anos recentes os grãos das grandes fazendas do Matopiba possibilitaram que o Nordeste conquistasse a autossuficiência na produção de alimentos, o Sealba se caracteriza por pequenas propriedades com as vantagens logísticas da proximidade dos portos, de indústrias de fertilizantes e dos centros urbanos. Espera-se que, apoiado por políticas públicas de pesquisa e extensão, isso favoreça o desenvolvimento de uma classe média rural nordestina, numa região ainda de baixo IDH.
Sealba Show é termômetro da expansão do agro
“A gente tem essa facilidade logística aqui. Se pegar o Cerrado brasileiro na década de 70, jamais alguém poderia dizer que se transformaria na potência agrícola que é hoje. Isso foi tecnologia, adaptação de cultivares, manejo de solo, técnicas de conservação que fizeram o Cerrado ser a potência agrícola do Brasil, onde hoje está inserido o Matopiba", diz Marcus Cruz, chefe-geral da Embrapa Tabuleiros Costeiros.
"No Sealba temos gargalos também, e a Embrapa tem um papel fundamental, assim como outros parceiros de pesquisa, para fazer que essas tecnologias cheguem até o produtor e proporcionem o desenvolvimento”, acrescenta.
O sucesso do Sealba Show, que existe há apenas dois anos, no município sergipano de Itabaiana, é evidência de que a região está sendo transformada. A segunda edição da feira, em fevereiro deste ano, atraiu 40 mil visitantes. Não param de chegar à região empresas de implementos agrícolas, insumos e máquinas. O setor hoteleiro cresce.
Para Cruz, trata-se do bom contágio. “A própria delimitação da região, e o próprio nome Sealba, que já está de domínio público, tem contribuído fortemente para o crescimento. Temos os produtores locais, que migraram para novos cultivos, e os de outras regiões que chegam com visão de futuro. Eles veem o potencial de crescimento. Com certeza, superando alguns gargalos tecnológicos, o Sealba tem tudo para se consolidar”, conclui.
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