Imagine uma política de reforma agrária em que os candidatos a um pedaço de terra se submetam a processo de seleção pública, convocado por edital, com total transparência e publicidade dos critérios para aprovação?
Muitos brasileiros talvez não saibam, mas esse é o sistema adotado pelo Incra desde 2019, com 66 editais publicados e 3.580 vagas para lotes de reforma agrária em 19 estados. No total, 897 famílias já foram assentadas sob tais critérios no Ceará, Minas Gerais, Paraíba e Santa Catarina. O velho modelo em que o governo apenas reagia às invasões, depredações e negociata de lotes foi aposentado ainda no governo de Michel Temer, quando o Tribunal de Contas mandou suspender as desapropriações de imóveis rurais, a seleção de famílias e a concessão de crédito, diante de um mar de irregularidades herdadas das administrações petistas. À época, o TCU apontou que 580 mil famílias (de um total de 960 mil) assentadas apresentavam indícios de irregularidade no ingresso ao programa de reforma agrária ou não cumpriam os requisitos exigidos por lei.
Após o freio de arrumação, o atual governo retomou a reforma agrária, mas com premissas totalmente diferentes. O Incra dedicou-se a separar o joio do trigo – foram depurados do programa empresários, políticos e até pessoas mortas – e passou a identificar as famílias em conformidade com os critérios exigidos pela Lei 8.629/1993, como a experiência anterior com a terra, seja como pequeno proprietário, trabalhador rural, parceiro, arrendatário ou posseiro. As invasões, na comparação com governos petistas, praticamente foram zeradas. No governo Bolsonaro, a média nunca chegou sequer a duas invasões por mês, enquanto nos governos do PT atingiu picos de quase 30 invasões por mês.
Titular terras "causa ojeriza" ao MST e à Contag
Uma etapa que antes nunca chegava – a da titulação da propriedade para os assentados – ganhou destaque na atual administração. O governo Bolsonaro deve encerrar o mandato com quase 450 mil títulos de propriedade emitidos, mais do que todo o volume concedido no período de administrações petistas. “O MST e a Contag sempre tiveram ojeriza a isso. Por que se você titula a terra e dá uma estrutura para o assentado, você tira a pessoa da dominação política. E dominação política faz parte do MST, ele vive de fazer dominação dos pobres”, diz Xico Graziano, ex-deputado federal e presidente do Incra no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, nos anos 90.
Pois a ordem na casa começou a ser perturbada, imediatamente após o resultado das eleições presidenciais. O Movimento dos Sem-Terra (MST), que forma a militância campesina do Partido dos Trabalhadores (PT), aproveitou um dos primeiros feriados pós-eleição (o MST sempre prefere os feriados) para invadir duas fazendas no interior da Bahia. E mentindo sobre o suposto abandono de uma das propriedades, que pertence à FERBASA, maior produtora de ferroligas do país.
A senha para início das invasões tinha sido dada pelo líder do movimento, João Pedro Stedile. Em vídeo, analisando o momento político, Stedile conclamou o retorno dos antigos métodos de desestabilização: “Na história da humanidade, nunca houve mudanças sem a pressão popular. Se o segredo é esse, nós devemos continuar organizando o povo para realizar as mobilizações e pressão popular para que haja mudanças”.
Antes da eleição, em entrevista ao podcast Três por Quatro, Stedile tinha sido mais direto. “Acho que a vitória do Lula, que se avizinha, trará uma consequência natural, um reânimo para retomarmos as grandes mobilizações de massa, que não é só passeata, é quando a classe trabalhadora recupera a iniciativa na luta de massas, então ela passa a atuar na defesa dos seus direitos de mil formas, fazendo greve, ocupações de terra, ocupação de terreno, mobilizações, como foi no grande período de 1978 a 1989”.
Lula sabe que MST não invade apenas terra improdutiva
Nada mais desconectado da nova realidade brasileira. Graziano é taxativo: “Não existe mais terra ociosa no Brasil, não tem mais área improdutiva, obviamente, com as exceções de sempre. Se esses malucos invadirem propriedade rural, será em fazenda produtiva”. Graziano lembra que Lula disse na campanha eleitoral que o MST só invade terra improdutiva. “Mentira. Ele sabe que não é verdade”, rebate. Colocar reforma agrária como um item prioritário na pauta do país seria uma decisão anacrônica. Já foram destinados à reforma agrária 90 milhões de hectares e sua própria implementação “assustou fazendeiro relapsos” no passado, pondera o ex-deputado. O cenário mudou com a transformação capitalista da agricultura brasileira, sua modernização tecnológica e salto de produtividade, na esteira do Plano Real, que estabilizou a economia e atacou a especulação do capital fundiário.
“Reforma agrária é um processo já encerrado na história da civilização. Não tem mais. Começou lá na época de Roma antiga e acabou nos anos 60. O Brasil fez uma reforma agrária fora de época e essa é a principal razão pela qual é um tremendo insucesso. Espalhamos favelas pela zona rural, porque hoje é o mundo da tecnologia, não adianta enxada e vontade para trabalhar um pedacinho de terra. Não é isso que garante qualidade de vida e renda no campo. Então, esse ciclo está encerrado”, enfatiza o ex-dirigente do Incra.
No Paraná, um dos estados mais agitados por invasões de terra nos anos 90 e início dos anos 2.000, a Federação da Agricultura (FAEP) disse acreditar que o governo eleito tem ciência de que o setor agropecuário segura há anos a balança comercial do país. E que não irá permitir “a rotina do campo passe por desordem”. “Sobretudo, esperamos que os produtores rurais do Paraná e do Brasil tenham segurança jurídica para continuar produzindo alimentos”, disse, em nota, a federação. Tom parecido adotou a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), que posicionou-se afirmando que é preciso um governo “do país, acima de tudo”, que proporcione “segurança jurídica para o produtor, defendendo-o das invasões de terra, da taxação confiscatória ou desestabilizadora ou dos excessos da regulação estatal”.
Seleção hoje é feita longe das invasões
Atualmente, com a chamada Plataforma de Governança Territorial, a seleção dos candidatos à reforma agrária ocorre longe de invasões e acampamentos. “Com essa ferramenta, a gente pode efetivamente recepcionar de maneira impessoal, sem intermediários, as famílias que almejam serem beneficiárias do programa. Conseguimos qualificar a demanda, saber quantas famílias são, quem se enquadra ou não nos requisitos, e onde está concentrada a maior demanda para essa política", explica Giuseppe Serra Seca Vieira, diretor de Desenvolvimento e Consolidação de Assentamentos do Incra.
Com a informatização do processo, o Estado pode identificar as demandas e decidir, em cima de dados objetivos, onde precisa intervir para criar um novo projeto de assentamento. "Não há dependência da pessoa ser indicada por ninguém, ou ser parte da lista de alguém. Ela busca se inserir no processo por meio dos editais abertos, um sistema público, sem custo para o cidadão e impessoal”, destaca Vieira.
A mesma plataforma que organiza eletronicamente a fila de interessados também possibilita aos assentados requerer uma análise para titulação das terras, independentemente da anuência de qualquer movimento, seja MST, Contag ou Pastoral da Terra. Quem encontra alguma dificuldade de acessar os meios digitais pode ser ajudado pelos servidores do Incra ou de prefeituras conveniadas – mas essa ajuda se limita ao preenchimento dos formulários, não envolvendo nenhuma tutela ou “patrocínio” da causa.
Interessados em lotes de já podem se inscrever on-line
Até aqui, as inscrições tinham de ser feitas presencialmente em locais e datas indicadas nos editais. Desde o dia 1º de novembro, no entanto, o processo ficou mais ágil, e qualquer interessado pode fazer um pré-cadastro on-line. A partir do CPF o sistema verifica se a pessoa atende aos critérios de elegibilidade, cruzando dados de diversas bases governamentais. E todo o processo é público, ou seja, qualquer um pode conferir a relação dos inscritos, os pedidos de inscrição indeferidos, a pontuação classificatória e relação de candidatos aprovados.
Para o pouco que ainda restar de reforma agrária, Graziano diz que o atual sistema adotado pelo Incra, de editais para seleção pública de interessados em trabalhar na terra, representa um avanço significativo. “Todo o processo sempre foi feito sem qualquer capacidade de planejamento, o pessoal invade e você tem que resolver o problema da invasão. Isso é um processo completamente diferente do que invadir e colocar na terra gente que não tem capacidade, não tem preparo no mundo da tecnologia para evoluir. Acho elogiável”, sublinha.
Graziano pontua que chegou a propor um modelo parecido, de inscrição pelos Correios, nos anos 90, para que houvesse seleção e capacitação das pessoas em escolas de agronomia, antes da entrega de qualquer terra. Mas o que acabou prevalecendo nos anos seguintes foi a indústria da reforma agrária. “Havia uma sacanagem geral, em termos de negociata mesmo. Tinha gente grossa envolvida nesse processo, ganhando dinheiro comprando terra, vendendo terra para reforma agrária. Mas como é difícil de provar, é difícil escrever isso também”.
Amigo de Lula foi condenado por negociata com o Incra
Ainda que o ex-deputado não aponte nomes, um dos beneficiários das negociatas com o Incra teria sido o pecuarista José Carlos Bumlai, compadre de Lula, que segundo perícias contratadas pelo Ministério Público Federal vendeu uma fazenda em Corumbá (MS) para o Incra com superfaturamento de R$ 7,5 milhões. Bumlai acabou condenado pela Operação Lava Jato, em 2016, a 9 anos e dez meses de prisão, por corrupção passiva, entre outros crimes, inclusive um empréstimo fraudulento de R$ 12,17 milhões, dinheiro que teria sido repassado integralmente ao Partido dos Trabalhadores.
Em seu site, o MST dá conta da existência de 80 mil militantes em acampamentos precários espalhados pelo país. Apesar das invasões recentes na Bahia, João Pedro Stedile tem dito que o foco, no momento, está na articulação de sete mil comitês populares, “articulados em sindicatos, mandatos, movimentos populares e partidos”. “É importantíssimo que esses comitês se reúnam e tenham vida própria. E o que fazer lá no comitê? Discutir um plano de emergência para o governo Lula”, disse Stedile. Seja o que for o tal “plano de emergência”, se trouxer a reboque invasões e baderna no campo, terá de atropelar, também, conquistas institucionais e civilizatórias dos últimos anos. Para Graziano, se as invasões retornarem, “ficará claro ser um movimento anti-histórico”.
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