Mais de um ano se passou desde que o departamento federal de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos, o FDA, sinalizou que faria o anúncio do que exatamente significa a palavra “natural” nos rótulos. Nada aconteceu, mas os consumidores resolveram levar a questão aos tribunais.
Há processos contra a Sargento, gigante do setor lácteo, porque as vacas que produzem o suposto queijo “natural” se alimentam de ração com grãos geneticamente modificados.
Há processos contra o Walmart pela venda de croutons 100% natural que contêm mononitrato de tiamina e ácido fólico – duas vitaminas do complexo B que são fabricadas sinteticamente.
Os consumidores também processaram a marca HINT, que engarrafa água “totalmente natural” com sabor de frutas, mas que usa aditivo químico para realçar o sabor.
Desde janeiro, as estatísticas mostram que aumentou o ajuizamento de ações contra empresas alimentícias envolvendo produtos anunciados com o rótulo “natural” ou “100% natural” – e alguns advogados jogam a culpa disso no silêncio do FDA, órgão que equivale à Agência de Vigilância Sanitária no Brasil.
Até julho, foram cadastrados nos Estados Unidos 19 processos contra a propaganda de alimentos “naturais”, contra 27 em todo o ano passado. As ações são de consumidores individuais e de algumas ONGs que argumentam que o rótulo “natural” predispõe as pessoas a comprar um produto mais caro – seja queijo, água saborizada ou croutons – , escondendo a verdadeira forma de produção. Meia dúzia de escritórios de advocacia ajuizaram a maior parte das ações.
“É de se admirar que estejam ressuscitando este tipo de ação judicial, coisa que já vimos dois anos atrás”, diz Charles Sipos, advogado do escritório Perkins Coie, que defende indústrias alimentícias. “Os reclamantes argumentam que o FDA ainda não se manifestou a respeito, o que parece mais uma admissão do medo de que não haja qualquer posicionamento”.
Há tempos juízes, associações de defesa do consumidor e até fabricantes vêm pedindo ação governamental no debate acalorado sobre o que significa a palavra “natural” em um rótulo – assim como as palavras “integral” e “puro”, que também são alvo de ações judiciais.
Para os fabricantes, uma definição oficial esclareceria as regras do jogo, ajudando a evitar imbróglios na Justiça. Para as associações de defesa do consumidor, a questão é evitar que as pessoas desembolsem mais dinheiro sem saber o que realmente tem de natural no produto que estão comprando.
Uma pesquisa realizada no ano passado pela Consumer Reports aponta que 73% dos consumidores americanos buscam produtos com o selo “natural”. Mas muitos acreditam, erroneamente, que a mera presença da palavra indica a ausência de ingredientes sintéticos, altamente processados ou modificados geneticamente – quando na verdade o que não existe é uma regra que defina o que é ou não natural.
Extraoficialmente, o FDA entende que produtos ditos naturais não devem conter “nada artificial ou sintético (incluindo todos os corantes, independentemente da origem)”. Em 2015, depois de mais de 100 processos judiciais e vários pedidos de magistrados, o FDA concordou em fazer uma consulta popular sobre o tema. O prazo final, que era fevereiro de 2016, passou para maio do mesmo ano. Desde então, a agência permanece muda sobre que ações pretende tomar.
Debora Kotz, porta-voz do FDA, disse que o departamento está no momento “revisando as sugestões recebidas ... quanto ao uso do termo natural nos rótulos alimentícios, antes de decidir os próximos passos”. Ela não especificou quando tais passos podem acontecer. O processo de baixar normas costuma ser demorado e não há qualquer indício de que isso tenha a ver com a mudança de governo).
Até que venham as regras, a indústria alimentícia enfrentará uma nova onda de processos contra os “alimentos 100% naturais”. Além da questão da regulamentação do FDA, uma recente decisão judicial, na Califórnia, facilitou o ajuizamento de ações civis públicas contra as empresas, o que pode resultar em mais litigância.
O caso contra a marca Sargento é particularmente interessante, porque não alega que o queijo “natural” contém ingredientes artificiais ou geneticamente modificados. O argumento é de que as vacas que produzem o leite utilizado pela Sargento são alimentadas com ração contendo transgênicos ou são tratadas com hormônios e antibióticos.
“Consumidores de bom senso acreditam que se uma vaca consome pasto, milho ou soja geneticamente modificados, ou se recebe BST (hormônio de crescimento) e então produz leite, a caseína não pode ser ‘natural’, e os produtos derivados, como queijo, também não são naturais”, diz trecho de um processo.
A reclamante neste caso, Brittany Stanton, é uma moradora de Seattle que costumava comprar queijo da marca Sargento. Ela é representada pelo advogado Michael Reese, que tem uma vasta ficha com reclamações contra produtos “100% naturais”, contra várias companhias.
Os advogados da Sargento rebatem, dizendo que as alegações não têm “base legal”. A empresa também sustenta que as decisões sobre o assunto devem ser tomadas pelo FDA, e por ninguém mais, tomando emprestado um refrão bastante repetido pelo outro lado nas ações civis públicas.
Artimanha jurídica?
O Instituto para Reforma da Legislação, afiliado à Câmara de Comércio dos Estados Unidos – que prega mudanças no instituto da ação civil pública – diz que tais ações não passam de artimanhas, planejadas para encher o bolso dos advogados e não render quase nada para os reclamantes.
O instituto cita o exemplo de uma proposta de acordo recente feita à rede Subway, em um longo processo que questiona o fato de os sanduíches não terem sempre 15 centímetros: seriam depositados mais US$ 500 mil para os advogados e cerca de U$ 500 para poucos reclamantes. Um juiz de Milwaukee indeferiu o acordo nesta semana e chamou o caso de uma perfeita “mamata”.
É o que acontece com a maioria das ações contra os alimentos “naturais”, argumenta a Câmara de Comércio, que vê as ações civis públicas como algo prejudicial aos consumidores, porque levam as empresas a aumentar os preços para cobrir os custos dos processos judiciais.
“Os consumidores não estão ganhando nada”, afirma Lisa Rickard, presidente do Instituto para Reforma da Legislação. “Mas os advogados saem dos tribunais com quantias enormes nos acordos. É ridículo”.
Por outro lado, até Lisa Rickard concorda que as ações civis públicas podem servir a um propósito legítimo. Como a jurista Nicole Negowetti demonstrou em artigo publicado pelo Instituto Brookings em 2014, alguns desses processos – que começam como tática de pressão dos militantes de alimentos saudáveis sobre o FDA – podem ajudar a identificar e corrigir falhas na regulamentação.
É certamente o que acontece no caso do selo “natural” nos alimentos, afirma Charles Sipos, o advogado do escritório Perkins Coie. No momento, Sipos e outros advogados que defendem a indústria esperam que o FDA termine o que começou. Até que isso aconteça, a tendência é ver “mais do mesmo tipo de briga nos tribunais”.
No Brasil, é proibido rótulo de “produto natural”
A polêmica em torno do que é um produto natural, nos Estados Unidos, foi resolvida no Brasil no início dos anos 2.000 por meio da resolução RNC 259/2002. Quer dizer, pelo menos em tese, o assunto deveria estar resolvido.
A resolução proíbe o uso das expressões “produto natural”, “puro”, “original” e outras equivalentes. Segundo a Anvisa, esses termos “não estão previstos na legislação vigente e podem induzir o consumidor a engano quanto à verdadeira natureza do produto. Denominações de qualidade podem ser utilizadas desde que estejam previstas em regulamentos técnicos específicos”.
A página na internet da Anvisa sobre perguntas e respostas sobre rotulagem esclarece, também, que o fato de não serem utilizados aditivos na formulação não dá direito ao uso de expressões “produto natural”, “sem conservantes”, “sem aditivos” e outras semelhantes. “A legislação na área de alimentos é positiva, portanto, o que não constar da legislação não tem permissão para ser utilizado em alimentos. Ademais, pode induzir o consumidor a engano quanto à verdadeira natureza do produto”. Clique AQUI para ler o esclarecimento completo da Anvisa sobre regras de rotulagem.