Etapas da cultura de tecidos para regeneração e seleção de plantas editadas via Crispr| Foto: ANeto / Embrapa
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Um parecer da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), do início deste mês, reconheceu como não transgênica uma soja que sofreu edição genômica para desativar alguns fatores antinutricionais, tornando o grão mais digerível e nutritivo tanto para seres humanos como para frangos e suínos. Mais do que mera decisão protocolar, o posicionamento consolida uma visão mais moderna da regulamentação das pesquisas genéticas no País, com reflexo direto na velocidade com que os avanços chegam à campo.

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“A biossegurança está preservada. Mas por não ser considerada transgênica, essa soja não precisa passar por um complexo processo de regulamentação que encarece muito a biotecnologia na agricultura. Por outro lado, se fosse por um programa clássico de melhoramento, eu teria que cruzar variedades por uns dez anos para conseguir esse atributo. Agora, com essa técnica que ganhou o Prêmio Nobel em 2020, eu simplesmente pego esse gene e coloco na minha variedade mais produtiva”, comemora Alexandre Nepomuceno, chefe-geral da Embrapa Soja, em Londrina (PR).

A técnica de edição gênica mencionada por Nepomuceno se chama Crispr (Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas) e foi aprimorada pelas cientistas Emanuelle Charpentier, francesa, e Jennifer Doudna, americana. No caso brasileiro, utilizando uma espécie de tesourinha para cortar a fita do DNA, os pesquisadores conseguiram desativar o fator antinutricional da lectina em uma cultivar de soja altamente produtiva. Até aqui, para desativá-la, era feito um processamento térmico que encarecia os custos de produção. O que a CTNBio fez foi declarar se esse grão editado deveria ser considerado transgênico ou convencional.

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Processo imita o que já acontece na natureza

Desde 2018, uma resolução normativa da CTNBio estabelece critérios para consultas envolvendo as chamadas “Técnicas Inovadoras de Melhoramentos de Precisão”, onde se encaixa a edição genética pela ferramenta Crispr. Até aqui, a CTNBio ainda não havia sido provocada a se manifestar sobre nenhuma técnica envolvendo a soja, principal commodity agrícola do País.

Ao decidir que não há transgenia, e, portanto, o grão é convencional, a CTNBio age em linha com agências reguladoras de vários outros países, como Austrália, Japão, China e todas as Américas, com exceção da Venezuela e Bolívia. “No caso dos transgênicos, tem outra espécie colocada na soja e no milho. Nas plantas editadas, você manipula o DNA da própria espécie e imita o que já acontece na natureza, seja por acaso ou por meio do melhoramento clássico”, pontua Nepomuceno. Essa legislação mais assertiva, segundo o pesquisador, favorece a democratização do uso da biotecnologia na agricultura, abrindo espaço para atuação de pequenas e médias empresas nas pesquisas para agregar valor ao agronegócio.

Quem também vê novos horizontes com as decisões recentes da CTNBio é o pesquisador Luiz Sergio Almeida Camargo, da Embrapa Gado de Leite, de Juiz de Fora (MG). Antes do parecer sobre a soja, a CTNBio já havia entendido como não transgênico o processo de edição genômica para bloquear a expressão de um gene da miostatina em bovinos. Com o gene dessa proteína suprimido, há um desenvolvimento duplicado da musculatura, resultando em animais “bombados”, com maior rendimento de carne.

No ano passado, os cientistas brasileiros da Embrapa Agroenergia já haviam conseguido licença para tocar adiante as variedades de cana Flex I e Flex II, que tiveram genes silenciados para resultar em menor rigidez da parede celular da planta e maior concentração de sacarose, respectivamente. A CTNBio também já deu sinal verde a uma tilápia da empresa americana AquaBounty editada geneticamente para render 20% mais de filé.

Decisão é incentivo para financiamentos às pesquisas

“É uma nova perspectiva porque a CTNBio sinaliza que deve seguir essa mesma linha, desde que eu prove que não coloquei nenhum gene de fora e não estou causando nenhum mal ao animal, que é uma coisa que já existe na natureza. Você vai fazer uma pesquisa e vê perspectiva de que ela venha a ser usada”, diz Camargo. Ele destaca ainda um benefício adicional, que é o incentivo para investir nessas pesquisas, porque o criador terá mais segurança de que a tecnologia de ponta não esbarrará num complexo sistema de licenciamento.

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Ainda que haja menos entraves regulatórios para expansão da técnica do Crispr, os resultados não são imediatos. Permanece o ritual científico de testes e retestes em laboratório antes de levar os experimentos a campo, em diferentes regiões, para confirmar a obtenção dos efeitos esperados. Mesmo assim, vários anos de espera e milhões de reais devem ser economizados.

Promissora no setor produtivo de plantas, animais e microrganismos, a edição de genomas é esperança também na busca da cura de doenças genéticas e do câncer em humanos. Das 50 mil mutações genéticas associadas a doenças, 32 mil são passíveis de edição. No Brasil, a manipulação de células-tronco embrionárias é regulamentada pela Lei de Biossegurança, e só permite o uso dessas células para fins de pesquisa ou terapia, desde que elas sejam inviáveis e obtidas por fertilização in vitro.

Irumuara Interaminense Uliana, produtor e consultor agrícola vistoria solo em propriedade de Montividiu-GO| Foto: Michel Willian / Arquivo Gazeta do Povo

Tecnologia Crispr não deve "aposentar" transgênicos

Seria a edição genômica uma tecnologia substituta para a transgenia? Nepomuceno diz que não. “Tem coisa que não vamos conseguir fazer com a edição gênica. E aí o transgênico vai continuar sendo importante, mas vai ficar na mão de meia dúzia de empresas que têm dinheiro para pagar a regulamentação absurda que é. Características complexas, como a própria produtividade e a tolerância à seca, talvez a gente não consiga com o Crispr. Nós estamos tentando acertar um gene que afeta vários outros genes ao mesmo tempo. Se funcionar, estamos feitos. A ciência é assim”.

Em relação aos transgênicos, o chefe-geral da Embrapa Soja é crítico da regulamentação restritiva adotada em alguns países, inclusive o Brasil. Depois de 20 anos de transgenia nas lavouras, não há registro científico de que os OGMs tenham causado mal à saúde humana. Os ganhos são evidentes. O milho Bt, resistente a pragas de difícil manejo, aposentou o uso de inseticidas. A soja resistente ao glifosato evita igualmente a necessidade de múltiplas aplicações de herbicidas.

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Mesmo assim, o processo regulatório de registro e licenciamento se mantém complexo e chega a custar 100 milhões de dólares por variedade transgênica. Isso acaba restringindo a tecnologia a poucos players e a grandes culturas comerciais, limitando outros potenciais benefícios à população. E os royalties ficam para poucas empresas, geralmente multinacionais.

Transgenia tem conquistas que não avançam devido a regras severas

“Nós fizemos muitas coisas bacanas em transgenia na Embrapa, não só em commodities. Mas essa polêmica, na prática, fez om que ninguém investisse em biotecnologia em outras espécies que não commodities. Você não vê transgenia em maçã, em uva, em alface, onde poderia usar essa tecnologia para agregar valor. Nós tínhamos um projeto na Embrapa de uma alface com mais ácido fólico, que talvez nunca vá para o mercado por que é transgênica. Mas as pessoas se esquecem que os transgênicos estão entre nós desde antes de entrarem na agricultura. A insulina, desde o final da década de 70, o hormônio humano de crescimento, as vacinas, as bolinhas azuis do sabão em pó”, destaca Nepomuceno.

A adoção dos transgênicos nas lavouras brasileiras, no final dos anos 90, foi atrasada por posicionamentos político-ideológicos como os do governo do Paraná, à época comandado por Roberto Requião, que chegou a proibir o cultivo dos OGMs no estado e mesmo a exportação pelo Porto de Paranaguá. Atualmente, os transgênicos respondem por 95% da área cultivada com soja e mais de 90% do milho e algodão brasileiros.

Reconhecendo a importância dos transgênicos, o presidente da CTNBio, Paulo Augusto Vianna Barroso, pondera que ainda é necessário uma série de avaliações "para verificar se o que foi modificado não pode resultar em organismos que possam gerar danos ao meio ambiente, à saúde humana e à saúde ambiental".

Para CTNBio, riscos da edição genômica se equiparam aos do melhoramento clássico

Quanto às técnicas de edição genômica, os riscos, diz Barroso, são de mesma monta dos riscos gerados pelo melhoramento genético convencional. "O que CTNBio fez foi ajustar as suas avaliações ao risco potencial do tipo de manipulação. Não deixamos de fazer avaliações criteriosas sobre o organismo editado. Essas avaliações incluem a espécie, o tipo de alteração, a técnica utilizada, o uso pretendido, o resultado obtido e detalhes bastante aprofundados sobre a alteração da sequência do DNA. Caso se verifique que o organismo cumpre todos os requisitos que o tornem passível de ser obtido por técnicas clássicas de melhoramento, a CTNBio autoriza que o organismo editado possa seguir no processo de avaliação de segurança e efetividade usando os mesmos critérios estabelecidos por outras instituições do governo para organismos convencionais".

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Barroso reforça que normas similares às brasileiras para edição gênica "já foram adotadas por dezenas países, incluindo Japão, EUA, Canadá e Austrália". "Até que a CTNBio dê seu parecer se esse organismo tem risco similar ou não aos organismos convencionais, todo o processo de manipulação deve ser realizado seguindo estritamente as normas da CTNBio para OGMs", acrescenta.