STF contrariou texto da Constituição, segundo o qual propriedades produtivas “são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária”.| Foto: Jonathan Campos/Arquivo/Gazeta do Povo
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Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) adotaram uma interpretação “socialista” do artigo 185 da Constituição Federal, contrariando o texto que diz expressamente que propriedades produtivas “são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária”.

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O STF julgou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) impetrada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) contra a trechos da Lei da Reforma Agrária (Lei 8.269/1993). Para a CNA, a lei complementar confunde conceitos de utilização da terra e eficiência de sua exploração, acabando por dar tratamento igualitário a propriedades produtivas e improdutivas.

Por unanimidade, os ministros decidiram que a propriedade privada, mesmo produtiva, pode ser objeto de reforma agrária caso não cumpra sua função social. A inovação no entendimento se baseia numa releitura do parágrafo único, do mesmo artigo 185, que diz que “a lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social”.

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Segundo a Lei da Reforma Agrária, a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, os seguintes requisitos: aproveitamento racional e adequado, uso adequado dos recursos naturais, cumprimento da legislação trabalhista e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores.

Critério subjetivo fragiliza o direito à propriedade

Para advogados e juristas ligados ao setor agropecuário, o STF colocou critérios subjetivos à frente do quesito principal, que é o da produtividade da terra.

“Adotar como critério de desapropriação a função social é algo subjetivo, como é o laudo antropológico de área indígena, de quilombola e comunidade tradicional. É inseguro demais do ponto de vista de objetividade jurídica”, avalia a advogada Samantha Piñeda, especialista em Direito Socioambiental. “Se eu quiser, eu entro em qualquer propriedade rural e acho um problema ambiental. Imagina se isso for critério para desapropriação, estamos mortos”, acrescenta.

Na avaliação de Renato Buranello, do escritório VBSO Advogados e presidente do Instituto Brasileiro do Direito do Agronegócio (IBDA), a decisão do STF tem o potencial de criar um ambiente de instabilidade e insegurança jurídica, com efeitos prejudiciais à atividade produtiva no país.

“Faltam balizamentos, por exemplo, do que seria um aproveitamento racional e adequado da propriedade”, afirma Buranello. Para o jurista, criou-se um espaço para interpretação meramente subjetiva do que seja o uso não adequado em relação à legislação ambiental, mesmo quando não há comprovada violação da lei e efetivo prejuízo ao meio ambiente.

Da mesma forma, seria muito genérico o critério de favorecimento do bem-estar dos proprietários e trabalhadores. “Há um condão interpretativo que pode levar à percepção de caráter subjetivista do efetivo cumprimento da função social da propriedade”, sublinha.

Regra deve ser a proteção da propriedade, diz jurista

O que o STF fez, segundo o jurista Daniel Vargas, professor da FGV e doutor em Direito pela Universidade de Harvard, foi inverter a lógica do sistema constitucional.

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“Os critérios da função social fixados na Constituição são guias e limites para esta intervenção excepcional do estado. A regra é a autonomia privada. A exceção é a ingerência pública. A regra é a proteção do proprietário. A exceção é levantar o 'véu da propriedade' para fazer valer, excepcionalmente, a vontade pública sobre a vontade do particular. Isso ocorreria apenas se e quando o Estado provar violações específicas às exigências da função social”, argumenta.

Na prática, contudo, os ministros inverteram a leitura do preceito constitucional, colocando o que era acessório como mais importante, e o que era principal como secundário.

Tal entendimento já havia sido confrontado pelo jurista Ives Gandra Martins, citado no próprio voto do relator do caso, ministro Edson Fachin. Ao analisar o tema, anotou Gandra Martins: “A propriedade produtiva não é objeto de desapropriação, e se não estiver cumprindo sua função social, a lei determinará os requisitos para que venha a cumpri-la. Tal exegese é a única possível. Admitir que a propriedade produtiva poderia ser desapropriada, se não cumprisse a sua função social, é torná-la idêntica às propriedades improdutivas, fazendo com que o inc. II do art. 185 não tivesse rigorosamente nenhum valor”.

Paisagem rural em São Gabriel do Oeste, Mato Grosso do Sul.| Foto: Jonathan Campos / Arquivo Gazeta do Povo

De igual forma, o ex-ministro do STF Maurício Corrêa já havia afirmado, em julgamento de caso anterior, que a Constituição precisa ser lida no sentido literal, quando afirma que as propriedades produtivas “são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária”.

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Não fazer isso, apontou Corrêa, seria “abrir uma válvula para o incentivo a desapropriações, por interesse social, de terras, que sob a ótica constitucional, não estão sujeitas à desapropriação-sanção, impondo um pesado ônus, indevido e inconstitucional, em prejuízo do titular de terras produtivas”.

Fachin invocou texto barrado na votação da Constituição em 1988

Ao justificar seu voto, o ministro Fachin lembrou que no processo de votação da Constituição de 1988 havia um destaque no texto que afirmava que a inobservância da função social “permitirá a sua desapropriação”.

O destaque não teve os 280 votos necessários e ficou fora da Carta Magna. Fachin, no entanto, justificou que a votação do destaque “manteve a abertura do texto constitucional”. E conclui que “deve o intérprete optar, dentre as interpretações legais possíveis, aquela que se ajuste ao texto constitucional. Se é ele aberto, não pode fechá-lo, sob pena de usurpar a função do Legislativo”.

“Assim, seja porque a própria Constituição exigiu o cumprimento da função social pela propriedade produtiva como condição para torná-la inexpropriável, seja porque, ao ainda remanescer a polissemia do parágrafo único do art. 185 da CRFB, poderia o legislador optar por um dos sentidos, nada há de inconstitucional na lei que concretiza o comando constitucional ou que opta por um dos sentidos possíveis do texto”, conclui o voto de Fachin.

Em outubro do ano passado, o ministro Luís Roberto Barroso já havia surpreendido o país ao estender um regramento do período da pandemia de Covid, determinando que os juízes não podem dar reintegração de posse de áreas invadidas sem antes fazer o assunto passar por uma comissão de conflitos fundiários.

Série de decisões cerceia o direito à propriedade

Outra ameaça ao direito de propriedade ocorre com a votação, em curso no STF, do marco temporal, que definirá os limites do que potencialmente pode ser reivindicado como terra indígena.

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Por parte do Executivo, o presidente Lula anunciou na semana passada a demarcação de duas terras indígenas em Roraima e um cronograma para outras seis demarcações.

“A forma como está se desenhando o negócio é o plano perfeito. Eles estão cercando pelo direito de propriedade, relativizando isso, estão cercando pelas comunidades indígenas e quilombolas, pela gestão dos ativos ambientais – o governo é o único chancelador de tudo isso. É colocar todo o meio ambiente brasileiro e possibilidade e desapropriação de áreas na mesa do governo”, aponta Piñeda.

Frente Parlamentar da Agropecuária promete reação no Congresso

E qual o efeito disso? “Uma gigante insegurança jurídica, isso vai provocar uma corrida para fora do país dos investidores que estavam querendo investir aqui. Com certeza vamos ter muito problema de credibilidade e vai cair o investimento”, conclui Piñeda.

Os movimentos do Executivo e do STF não vão ficar sem reação do Congresso, assegura o deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária.

“Tá difícil, tanto o governo federal quanto o STF parece que focaram em nos destruir e nos perseguir. Mas vamos legislar o que tiver que legislar, vamos entrar com as ações e buscar soluções para cada  um desses problemas. Estamos extremamente atentos para que se tenha a garantia do direito de propriedade, e, mais do que isso, que os produtores do país sejam respeitados pelo que fazem, e não perseguidos o tempo todo”, diz Lupion.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]