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Sob o aspecto técnico e econômico, está difícil de encontrar sentido na diretriz prevista pelo governo Lula de retomar o protagonismo da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) em operações de estoques reguladores. Esses estoques, que há anos praticamente não existem, funcionavam no passado como ferramenta de intervenção do governo no mercado para garantir preços mínimos aos produtores.
Os tempos são outros e os barracões da Conab que ainda não foram vendidos perderam sua relevância, diante da alta dos preços das commodities agrícolas e da modernização do mercado agropecuário, em que predomina amplamente a lei da oferta e demanda. A companhia, atualmente, tem um papel mais técnico e estratégico, realizando levantamentos de safra, de custos de produção e de armazenagem para subsidiar políticas públicas.
Mesmo assim, o presidente Lula e seus correligionários, já na campanha eleitoral, insistiram na volta dos estoques reguladores. “Você pode fazer estoque e, fazendo estoque, controlar o preço. Vai colocar mais produto no mercado quando o preço estiver alto. Fizemos isso, a Conab era uma coisa importante no meu governo ", disse o Lula candidato.
A intenção continua firme, a julgar pelo discurso de posse do ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, que reafirmou o papel da Conab na compra de alimentos “para formação de estoque regulador e para compra direta do Programa de Aquisição de Alimentos”.
Para formar estoques na marra, como propõe o governo, a Conab teria de passar por cima da lei que só permite essa ferramenta quando os preços de mercado estão abaixo dos mínimos. Seria também, na prática, gastar mal o dinheiro público e até ir contra as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), que combatem essa forma de subsídio. Quem vai tocar a nova-velha abordagem da Conab é o Ministério do Desenvolvimento Agrário, recriado por Lula e que ficou com a empresa pública, antes sob o guarda-chuva do Ministério da Agricultura.
Estoques reguladores públicos caíram em desuso
"Essa operação ficou absolutamente desnecessária. Nesses últimos 20 anos, a Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) atuava no apoio ao arroz no Rio Grande do Sul, ao trigo do sul do Brasil, e ao milho do Centro-Oeste, principalmente do Mato Grosso. Esses três produtos estão com preços bem acima dos preços de garantia. Então, esse lado de formação de estoques da Conab caiu em desuso. Nesse mercado, seja pelos preços internacionais, seja pela melhoria de logística, e no caso específico do Mato Grosso, pelo grande consumo de milho para fazer etanol, a Conab ficou de mãos vazias”, afirma Ivan Wedekin, economista que foi secretário de Políticas Agrícolas do Ministério da Agricultura no primeiro mandato de Lula, no início dos anos 2000.
Ressalvando que seus comentários são técnicos, e que não têm natureza política ou ideológica, Wedekin aponta que os armazéns da Conab hoje têm capacidade de estocagem inexpressiva, na casa dos 2 milhões de toneladas, além de serem inadequados e muito antigos. Se no passado a Conab tinha também o papel de distribuição física de cestas básicas, isso teria ficado obsoleto com o bolsa-família, que dá dinheiro para a compra de alimentos.
Quanto à comercialização de grãos, desde o início dos anos 2000 a Conab passou a fazer intervenções no mercado ao estilo hands-free, ou seja, sem pôr a mão nos produtos. Assim, se está sobrando milho no Mato Grosso, ou se o preço está abaixo do mínimo e falta milho no Nordeste, a Conab dá um prêmio para o escoamento, um tipo de subsídio ao frete.
Para combater a fome, argumenta Wedekin, há mecanismos mais modernos, como nos Estados Unidos, onde há décadas se adota a política dos food stamps, ou seja, créditos para compra de alimentos.
“O bolsa família caminhou nessa direção, você não manda mais a cesta básica. Você dá o dinheiro para a mulher, principalmente, fazer suas comprinhas lá. Dada a digitalização do dinheiro, é tudo automatizado. Do ponto de vista de política agrícola, essa busca de formação de estoque não faz sentido, e do ponto de vista abastecimento, numa análise nua e crua, também não cabe à Conab ficar distribuindo mercadorias físicas”, aponta. Restaria apenas a aquisição de alimentos da agricultura familiar, "a compra e a distribuição local, como na merenda escolar, como um braço social da economia”.
Intenção seria despejar dinheiro em movimentos sociais aliados do governo
Para outros observadores, a motivação por trás da anacrônica retomada de estoques públicos por parte da Conab pode ser bem menos nobre do que combater a fome, como tem pregado Lula. Xico Graziano, ex-deputado federal e ex-presidente do Incra, professor de MBA da FGV, acredita que o governo articula na verdade uma forma de financiar movimentos de esquerda, despejando montanhas de dinheiro numa agricultura pouco eficiente.
“O que nós vamos ver acontecer agora é mais uma vez a Conab gastar milhões comprando produto de grupos de pequenos produtores, em assentamentos de reforma agrária, ou daqueles chamados de familiares e campesinos, e distribuindo esses produtos para entidades variadas. Ok, mas a questão é a transparência desse processo. Teremos de ficar atentos para ver como isso vai se formar de novo, porque já foi terrível, e quem desmontou isso foi o Michel Temer. Uma rede de apoio que custava aproximadamente R$ 1 bilhão, que era distribuída para esses grupos, e alimentava essa máquina toda de grupos de invasores de terra pelo Brasil afora. Isso foi desmontado, era um desperdício de dinheiro”, destaca Graziano
Para o engenheiro agrônomo, falar em formação de estoques públicos hoje, a não ser em situação de guerra no país, não faz sentido: “Não é nem uma volta ao passado, é um devaneio. Mais do que isso, é um disfarce. A Conab vai ser importante para alimentar a máquina dos grupos anticapitalistas do campo, esse é o problema. Aqueles que ficam metendo o pau no agronegócio, que ficam xingando tudo. Vai dar um trabalho enorme isso. E o Lula vai fazer o que ele sempre fez. Ele veste o bonezinho do MST e depois vai lá agradar ao Blairo Maggi, que é um grande produtor, e faz isso tudo funcionar”.
Quem terá acesso aos recursos milionários das compras públicas?
O ex-deputado não discorda que a causa, aparentemente, é boa: favorecer os grupos de pequenos agricultores. O problema estaria na transparência do processo – como serão as licitações, quem terá acesso a esses recursos milionários. “Vai haver um privilegiamento total, vai ser uma dominância política total sobre as compras públicas que a Conab vai fazer. Já foi assim, os grupos chamados agroecológicos, isso virou uma rede pelo país todo. Tudo bancado pelo nosso dinheiro, milhões e milhões em convênios, em editais, etc. Isso ajuda a melhorar a distribuição de renda, ajuda esses grupos pobres de agricultores a se sair melhor na vida? Sim, é uma possibilidade, um caminho. Eu não me oponho que ações desse tipo sejam feitas. A questão é saber qual vai ser o controle disso, estando tudo lá num ministério controlado pelos anticapitalistas. Vai dar confusão lá na frente”, prevê.
Nem mesmo a justificativa de usar os estoques públicos para “baratear’ o preço dos alimentos se mantém em pé, numa análise mais detida. Para Vlamir Brandalizze consultor do mercado de commodities agrícolas, o discurso parece mais o de alguém “jogando para a torcida”. Ele alerta que o que funciona hoje no país é a lei da oferta e da procura.
“O feijão carioca escasseou muito, hoje está acima de R$ 400 a saca. Mas assim que vier a segunda safra, quando o pessoal colher a soja, vão ver que o feijão está com cotação boa e imediatamente o produtor vai plantar feijão e não vai plantar milho safrinha. E isso vai abastecer o mercado. É o mercado que se corrige rapidamente, sem a interferência do governo. Agora, se você tem estoque do produto, o cara não vai querer plantar porque sabe que o governo, na hora que o mercado melhora, ele entra e vende”, sublinha.
O fato de a agricultura ter se transformado no grande negócio do Brasil também compromete a efetividade dos estoques reguladores. Brandalizze, que também é plantador de feijão, observa que anos atrás recebia de R$ 6 a R$ 8 a saca. Hoje o preço está entre R$ 300 e R$ 400. “Veja quanto de dinheiro que uma Conab precisa para bancar qualquer volume de estoque. Os tempos mudaram”, afirma.
Para refutar o argumento de que o problema está no preço dos alimentos no país, Brandalizze cita o exemplo de outra commodity: “O arroz brasileiro é um dos mais baratos do mundo. O pacote de 5 quilos custa hoje entre R$ 13 e R$ 17 no supermercado. O arroz na Ásia, que normalmente é o mais barato do mundo, hoje custa de R$ 4 a R$ 7 o quilo, a granel, de qualidade inferior ao brasileiro. Nós estamos exportando mais de 2,2 milhões de toneladas de arroz neste ano, porque o arroz brasileiro está muito barato”.
Outra cadeia produtiva que ilustra a importância da não intervenção governamental indevida é o milho. Quando a produção brasileira estava voltada apenas para o mercado interno, nos momentos de crise o grão disparava e “matava o suinocultor”. “Hoje nós somos o segundo maior exportador de milho e talvez agora, em 2023, devemos até bater os EUA. Por que se tornou um grande negócio, daí você investe em tecnologia e produtividade. Quando é amarrado ao governo, fica muito travado, o pessoal acaba temendo, inclusive”, diz o analista.
O desafio, assim, não seria de baixar o preço dos alimentos no país, mas de dar renda aos brasileiros. “Eu mais acredito mais em emprego do que em outras coisas. Por que você dando emprego e a pessoa tendo renda, ele consegue comprar com R$ 20 um pacote de arroz de 5 kg, consegue comprar 1 kg de feijão com R$ 7 a R$ 10, um frango com R$ 6 a R$ 8, suíno com R$ 10 a R$ 12, ovo com R$ 5 a R$ 6 a dúzia. É tudo possível, desde que tenha dinheiro e emprego”.