As exportações brasileiras de carne bovina para a China foram suspensas, a partir desta quinta-feira (23), por decisão do Ministério da Agricultura. A medida cumpre um acordo entre os países que prevê a decretação de autoembargo diante de qualquer caso suspeito de Encefalopatia Espongiforme Bovina (EEB), o conhecido mal da “vaca louca”, que ataca o sistema nervoso central. A mera suspeita interrompe por tempo indeterminado – o prazo vai depender dos chineses – a exportação de 520 mil animais por mês, a um faturamento médio de US$ 676 milhões.
O Brasil nunca teve ocorrência de caso típico da doença, relacionado ao uso de cama aviária, farinha de carne e ossos na ração bovina, o que é proibido no país. A classificação de risco do Brasil é insignificante, segundo a Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA). Apesar disso, pela terceira vez em cinco anos a cadeia de gado de corte está sendo sacudida por uma mera suspeita.
Como já aconteceu em 2019 e 2021, o alarme tem tudo para ser falso, devendo se tratar de um caso atípico, ou seja, que ocorre naturalmente em animais mais velhos, devido a uma mutação espontânea. Casos assim não oferecem riso de disseminação no rebanho nem de transmissão ao ser humano.
Acordo draconiano diante de suspeita mínima de EEB
“Imagine uma propriedade com 160 cabeças de gado ser responsável por fechar o mercado do Brasil inteiro de carne bovina”, reage Fernando Henrique Iglesias, analista da Agência Safras & Mercado, referindo-se ao caso suspeito numa pequena propriedade de Marabá (PA).
Lygia Pimentel, estrategista-chefe da Agrifatto, também lamenta a repercussão e os prejuízos gigantescos de uma mera suspeita, com indicativos claros de nenhuma gravidade. “O animal desse caso tem tudo para ser atípico. Ele tem 9 anos, não se alimentava de ração, o que já elimina grandemente a possibilidade, e os animais conviventes com ele não apresentam sintomas. O risco é muito baixo”, avalia.
O problema maior estaria nos termos do acordo comercial entre Brasil e China, costurado em 2015, no governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). No afã de abrir o mercado chinês, aceitaram-se condições que não são exigidas de nenhum outro parceiro comercial dos asiáticos.
“É um defeito no nosso acordo comercial. Talvez a gente pudesse ter colocado que enquanto o risco do Brasil dentro da OMSA fosse insignificante, a gente continuaria exportando. Se mudasse o status, daí a gente pararia. Nesse caso, não é uma mudança de status, é uma suspeita que já suspende tudo. Esse é o grande problema”, avalia Lygia Pimentel.
A Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) também defende uma revisão dos termos do acordo com a China. "Já é hora de rever esse protocolo. Que assim que for detectado que o caso é atípico, ou seja, que não há risco algum, haja uma retomada automática das exportações. Que não precise que venha uma nova equipe sanitária para fazer vistoria e tudo mais. É um ponto que vamos levar ao Ministério da Agricultura, para que o produtor possa não ter prejuízos em situações como essa", diz Bruno Lucchi, diretor-técnico da CNA.
Suspeita de vaca louca trancou o mercado da carne
Se as suspeitas ainda seguem no campo das hipóteses, o mesmo não dá para dizer dos prejuízos, que já são reais. O mercado de carne bovina no país travou. Os frigoríficos suspenderam abates e novas compras. Lá fora, nos países concorrentes, o clima também é de expectativa com as oportunidades que podem ser geradas caso o Brasil, que fornece 50% de toda a carne bovina importada pela China, fique fora do jogo por um tempo prolongado.
Após a notícia do embargo, no Pará, a arroba do boi gordo recuou de R$ 235 para R$ 220. No Mato Grosso, de R$ 250 para R$ 240. Mas os negócios estão parados. Uma declaração do ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, de que os chineses teriam avisado que, dessa vez, a normalização deve ser mais rápida, evitou uma queda maior no mercado futuro.
Na avaliação de Leonardo Alencar, head do setor Agro da XP, a tendência será de queda de preço no mercado interno nas próximas semanas. E os criadores vão acabar perdendo margem. "O pecuarista provavelmente vai pagar uma parte dessa conta. Ele pode segurar o gado por uns dois meses, temos boas condições de pastagens. Se a China voltar logo, pode ser que o mercado volte. A dependência da China é a questão. Ela paga melhor que outros mercados, mas, se acontece um soluço lá, é muito negativo para nossos frigoríficos", avalia.
Como mais de dois terços da produção nacional de carne vermelha ficam no mercado doméstico, a CNA não vê razão para um recuo no preço pago ao produtor. A China já estaria comprando menos de qualquer forma, após o ano novo chinês, e a carne bovina vinha num viés de baixa no Brasil. "Não há justificativa para redução de preços ao produtor nesse momento, principalmente porque 72% do que nós produzimos fica no mercado doméstico. E dos 28% exportados, entre 57% e 60% vão para a China. A gente aguarda o resultado oficial, que vai sair do laboratório do Canadá, e logo em seguida, assim que se confirmar que o caso realmente é atípico, a gente acredita que haja um retorno imediato das exportações brasileiras para este país", afirma Bruno Lucchi, diretor-técnico da CNA.
Não há prazo para reabertura do mercado chinês
Nos termos do acordo comercial entre Brasil e China, no entanto, não há previsão de prazo mínimo para revisão do embargo. Em 2019 tudo se normalizou em duas semanas; já em 2021 foram quase quatro meses de espera.
Na avaliação de Alcides Torres, analista da Scot Consultoria, ainda que os protocolos com a China sejam rígidos, o Brasil não está em condição de mandar no mercado. “Nós somos comprados, não somos vendidos. A China pode comprar carne dos Estados Unidos, Uruguai, Argentina, Austrália, México, Europa. Eles têm todo o planeta de oferta. Nós não determinamos como vai ser”, enfatiza.
Segundo Torres, os chineses “evidentemente identificaram falhas em nosso sistema sanitário” e impuseram a condição de somente importar animais jovens do Brasil (com menos de 30 meses) como precaução, cientes da extensão continental do território, das fronteiras secas e das deficiências de infraestrutura e controle.
“Nós obedecemos porque foi uma maneira de conquistarmos esse mercado. Por outro lado, foi até bom para a zootecnia brasileira, porque acelerou todo o processo de terminação precoce do gado, o que faz bem para o meio ambiente, emite menos gás de efeito estufa. O gado fica menos tempo no pasto, o que aumenta a rentabilidade por hectare”, avalia.
No mercado da carne, Brasil não fica sem China, e vice-versa
Leonardo Alencar, da XP, entende que não será fácil para a China, do dia para a noite, arranjar outro fornecedor de carne vermelha. “Ao mesmo tempo em que o Brasil precisa exportar para a China, a China sem o Brasil não consegue preencher o que fica. Não existe país que possa preencher. Estados Unidos e Austrália podem preencher um tanto, mas, sem o Brasil, o consumidor chinês vai pagar mais caro”, enfatiza.
Quem também não vê muita saída para o gigante asiático é Cesar Castro Alves, consultor agro do Itaú BBA. O Brasil responde por mais de 50% da importação chinesa, cerca de 1,24 milhão de toneladas por ano. "Não faz sentido eles demorarem muito. Sobretudo porque o consumo lá está crescendo. A moeda deles voltou a apreciar um pouco e a previsão de crescimento [do PIB] de 5% é melhor do que no ano passado. Há uma leitura mais positiva que deveria sustentar o cenário para a carne bovina. Agora, há também questões políticas e até comerciais. Pode ser que aproveitem para pressionar a gente, dar uma gelada e depois retomarem. Mas tudo está na mão deles”, observa.
Resultado dos exames pode sair nesta sexta-feira
Quais as chances de mudança nos termos do acordo para exportação de carne para a China? “Vai depender da vontade de quem está comprando. E nosso produto é commodity, não tem marca. Eles podem comprar esse produto do planeta Terra”, diz Torres, da Scot Consultoria, que vê dificuldades numa renegociação.
Lygia Pimentel, da Agrifatto, acredita na correção do protocolo, porque, afinal, trata-se de burocracia. “É uma falha que deixa o mercado muito volátil. Não se trata necessariamente de um problema sanitário que o Brasil tenha. Até provar que focinho de porco não é tomada, tem que sair o exame laboratorial, a contraprova, daí é preciso redigir um ofício, comunicar a China, eles têm que receber, ler, interpretar e só então voltar a liberar. São algumas semanas ou meses, com certeza, vamos ter prejuízo”, afirma.
Segundo fontes do portal australiano ABC News, o resultado dos exames no laboratório de referência da OMSA, no Canadá, pode sair nesta sexta-feira. Como os chineses vão dar sequência ao protocolo, é algo que depende, especificamente, dos interesses da China.
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