| Foto: Marcelo Andrade / Arquivo Gazeta do Povo
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A venda direta de etanol das usinas produtoras ou de importadores para os postos de combustíveis, sem passar por uma distribuidora, ganhou nesta semana mais segurança jurídica após o Senado aprovar a Medida Provisória 1.100/2022 que regulamenta o pagamento de impostos por cooperativas que optarem por essa modalidade de transação comercial. Na prática, essas cooperativas de produção passam a ser equiparadas às usinas, com um sistema de tributação que busca assegurar que sejam recolhidos os mesmos impostos, independentemente de a venda ocorrer na relação usina-distribuidora-posto, usina-posto ou cooperativa-posto.

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Ao defender e implementar a modalidade de venda direta – o presidente Bolsonaro sancionou a lei em janeiro, com vetos – o governo tem buscado injetar mais competição no setor e reduzir os preços ao consumidor final. A consolidação desse novo canal de negócio depende, também, de ajuste na cobrança do ICMS nos estados, o que já aconteceu, por exemplo, em Alagoas e Pernambuco.

Analistas do mercado sucroalcoleiro são unânimes em apontar que o Nordeste é a região que mais pode ser beneficiada por esse novo canal de negócios, que quebra o oligopólio das distribuidoras. Pelo simples fato de a maioria das usinas estarem perto do Litoral e dos grandes centros consumidores. No município alagoano de São Miguel dos Campos, onde fica a Usina Caeté, em março o preço do etanol chegou a baixar 20 centavos por litro, depois que vários postos passaram a comprar o combustível no modelo FOB ou “self service”, na sequência da regulamentação da cobrança do ICMS.

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Dono do posto é quem decide a viabilidade do negócio

“A procura surpreendeu. Não posso dar números por que eles envolvem interesses comerciais. Mas em vez de três ou quatro distribuidoras oferecendo o produto, agora a opção envolve mais 20 usinas. Isso tende a se traduzir em preço menor na bomba”, diz André Bulhões, gerente da Usina Caeté. A unidade fica a cerca de 60 km de Maceió e Arapiraca, as duas maiores cidades de Alagoas. “Para os postos mais distantes, pode não fazer sentido comprar com a gente. A análise se é ou não viável não está na minha mão, mas é do dono do posto de combustível”, enfatiza.

O tira-teima da competitividade da venda direta no Nordeste só deverá acontecer, mesmo, a partir de agosto e setembro, quando começa o período da safra. Neste ano, os primeiros meses de abertura do mercado coincidiram com a entressafra na região, quando a maioria do produto já estava vendida e, segundo Bulhões, “havia pouquíssima disponibilidade de álcool”.

Medida tem o mérito de abrir espaço para livre concorrência

Estudioso do mercado sucroalcoleiro há mais de 20 anos, o economista da consultoria Pecege, Haroldo Torres, diz que a regulamentação da venda direta do etanol tem o mérito de abrir espaço para a livre iniciativa econômica. Olhando o “copo meio cheio”, diz ele, a medida vai mexer com a concorrência no Nordeste, em função da localização geográfica das usinas. Ele alerta, contudo, para alguns gargalos logísticos e para o poder de fogo das distribuidoras. “As distribuidoras movimentam grandes volumes, ou seja, tudo o que elas ganham em termos de escala, você perde nessa nova modalidade. Elas utilizam modais de transporte de alto volume, como dutos, navegação por cabotagem e bitrens. As usinas vão operar com veículos pequenos, envolvendo custos maiores. Ou seja, na média, no modal, esse modelo vai ser pouco eficiente. Mas deve servir como oportunidade para usinas que estão perto do mercado consumidor, que é o caso do Nordeste, e não sem motivo foi o setor sucroalcoleiro de lá que mais defendeu essa abertura”.

Nas regiões Sul e Sudeste, o panorama é outro. Além das longas distâncias das usinas para os principais centros consumidores, situação que desfavorece a venda direta, o etanol vem perdendo competitividade em plena safra porque os reajustes internacionais não estariam sendo repassados à gasolina nas últimas semanas. É o que aponta Filipi Cardoso, analista de inteligência de mercado da StoneX. “As vendas de etanol caíram bastante em maio, no comparativo com a safra anterior, pois em algumas regiões do Centro-Sul a paridade com a gasolina não está compensando. Em São Paulo essa paridade superou os 70%, sendo que acima deste percentual o consumidor já não vê vantagem econômica. Mas para as próximas semanas ainda teremos de ver como o mercado se comporta”, avalia.

Compra direta de etanol ainda tem volumes decimais

Nos dois últimos meses do ano passado, após uma autorização prévia da ANP para venda direta de etanol, foram comercializados nesta modalidade 3,9 milhões de litros, contra um montante total de mais de 2 bilhões de litros vendidos pelas distribuidoras. Na avaliação do consultor do mercado de combustíveis, e ex-diretor do Sindicato das Distribuidoras, Dietmar Schupp, a compra direta deve continuar a ter esses números decimais, por questões práticas. “Imagine que você tenha de comprar o cimento para a sua obra direto na fábrica, tendo que se deslocar para lá onde estão produzindo o cimento. Ou que vá comprar carne agora direto no matadouro, em grande quantidade. A cadeia de distribuição de combustíveis é uma cadeia estruturada. Vários estudos já demonstraram que o resultado dessa venda direta é muito pequeno perto do esforço despendido”, pontua Schupp.

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O fator escala também é destacado pelo consultor. Enquanto muitos postos compram de 10 a 15 mil litros por mês, as distribuidoras adquirem combustível na casa dos milhões de litros. E o peso do etanol é menor no mix de comercialização da distribuidora, na comparação com o diesel e a gasolina. “Acaba que distribuir esse produto pela distribuidora tem um custo mais barato do que o mesmo transporte direto da usina para o posto. Há casos em que se a usina estiver mais perto do posto, pode ter um preço melhor. Mas não se pode ignorar o poder de barganha das distribuidoras na hora de negociar o preço, por causa do grande volume adquirido”, conclui Schupp.

Grandes players não veem apelo na compra direta de etanol

Carlo Faccio, diretor do Instituto Combustível Legal, ligado a grandes players da distribuição como Raízen, Ipiranga e Petrobras, cita estudo da consultoria Leggio que aponta que menos de 5% dos postos têm potencial de se beneficiarem da compra direta nas usinas. “Esses 95% são postos que são abastecidos a longa distância, não compensa para a usina fazer a entrega. A usina não tem logística de entrega, não tem caminhões compartimentados, não tem departamento de crédito para fracionar as parcelas dos postos. Uma coisa é vender para uma ou duas distribuidoras, outra coisa é vender para 500 postos, emitir 500 notas fiscais. É mais complexo do que apenas fazer uma venda”.

O gerente de um dos maiores grupos sucroenergéticos do país, que por questões estratégicas pediu para não ser identificado, assegura que o esquema da compra direta não seduz os grandes produtores. “Não é um grande negócio, não tem tanto apelo econômico. Foi decidido dentro do governo de uma forma até bem-intencionada, mas não deve ter muitos efeitos práticos. A tendência de nós, consumidores, é achar que a melhor coisa é eliminar o intermediário. Mas nem sempre é assim dentro de cadeias que exigem especializações, otimização de custos e eficiência maior nessas operações”. E quanto à expectativa de alguma redução para o consumidor? “Por uma questão econômica, os postos fazem tomada de preços com a concorrência. Fazem um comparativo para definir o preço final. Na prática, em vez de passar para o consumidor todo o desconto obtido, é comum o posto se apropriar de parte dessa margem, como lucro”, explica.

A Unica, associação que representa a indústria sucroenergética do Sul e Sudeste do país, foi procurada, mas preferiu não se manifestar sobre o atual momento da venda direta aos postos de combustíveis. Em posicionamentos anteriores, contudo, a Unica foi contra a abertura por entender que poderia prejudicar o programa RenovaBio, que tem objetivo de reduzir as emissões de gases de efeito estufa no setor de transportes. Também chegou a alertar para os riscos à qualidade do etanol comercializado, do aumento da sonegação e consequente concorrência desleal. A Fecombustíveis, que representa nacionalmente os postos de combustíveis, também foi procurada, mas não retornou até o fechamento desta reportagem.