Imagine a seguinte situação: você ao volante de um carro na estrada, debaixo de chuva e com risco de aquaplanagem, quando de repente cruza uma ovelha na frente. Qual seria a sua reação para não atropelar o animal e evitar perder o controle do veículo?
O momento descrito acima está inserido no programa dos simuladores usados por centros de formação de condutores (CFCs) como parte do processo para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
E o que deveria ser uma oportunidade para testar e aperfeiçoar a condução do futuro motorista, retratando uma possível realidade, acaba se transformando quase que num jogo de videogame.
A partir de 16 de setembro de 2019 o uso do simulador deixará de ser obrigatório para a obtenção da CNH na categoria B, quando começa a valer a resolução 778/ 19 do Contran (Conselho Nacional de Trânsito), publicada na segunda-feira (17).
O governo federal justifica a decisão de torná-lo facultativo por entender que não tem eficácia comprovada e importância para a formação do condutor.
Além disso, reduzirá a burocracia e baixará o valor cobrado nos CFCs, segundo argumentou o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas.
Mas na visão de Celso Mariano, especialista multidisciplinar em trânsito e ex-integrante da Câmara Técnica Consultiva de Educação do Contran, o aparelho poderia ser útil no aprendizado do candidato.
Ele cita os exemplos de setores como aeronáutica ou náutica, nos quais se investe muito em simuladores para evitar falhas que poderiam colocar em risco a vida das pessoas ou gerar prejuízo, já que operam com equipamentos caríssimos.
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"O objetivo dos simuladores é criar de fato um ambiente que engane o cérebro, os sentidos da pessoa, para que ela se sinta o mais próximo possível de uma experiência real", destaca Celso, que também é diretor do Portal do Trânsito, site que interpreta de forma didática as principais informações do trânsito brasileiro.
O especialista reconhece que a tecnologia empregada na direção veicular é inferior à das áreas mencionadas por ele, por não oferecer com fidelidade situações reais no trânsito. E que um equipamento moderno sairia muito mais caro do que já é para a realidade brasileira.
"No entanto, mesmo esse simulador ruinzinho que está aí seria bem aproveitado no final do processo. E não entre a teoria e a prática", frisa.
Na visão dele o equipamento poderia ser empregado com um caráter didático para situações de riscos, não vivenciados a bordo de um carro de autoescola. "Treinaria tempo de reação, de percepção, ajudando no desenvolvimento das habilidades", avalia.
Seria interessante, inclusive, para o aluno que já sabe dirigir, mas ainda não tem experiência suficiente para usar a quarta ou quinta marcha do carro. Lembrando que nas aulas práticas, não se pode passar dos 60 km/h e nem pegar estradas.
Programa de simulação é engessado
É aí voltamos na história da ovelha cruzando à frente do carro. "No modelo atual, é impossível treinar aquaplanagem ou derrapagem em curva, simulando um curso de pilotagem", observa Aguilar Borsato Silva, proprietário da Auto Escola Silva, com mais de 60 anos de mercado em Curitiba.
"Primeiro porque as aulas no dispositivo são as cinco primeiras. Isso faz com que vire praticamente uma apresentação do carro. Você aprende o uso da embreagem, do freio. E depois porque o simulador que nós temos não é o ideal, ele não proporciona essa simulação com eficácia", ressalta o empresário, chancelando o argumento dado pelo governo.
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De acordo com Aguilar, se fosse para aproveitar de maneira obrigatória, teria de ser mais eficiente. "A gente tem de cumprir as aulas da forma como foram elaboradas. Não tem como fugir daquilo. A gente fica muito travado", critica o empresário, em referência ao pacote fechado das aulas, que não permite criar outras situações ao volante.
A Auto Escola Silva opera com três simuladores, adquiridos ao preço de R$ 45 mil cada. Aguilar afirma que não repassou o custo das máquinas para os clientes. "Tive de absorver. Eu deveria repassar, mas não fiz", garante.
Ele lembra que o simulador não é como carro, que mesmo depreciado é possível vender depois. O equipamento não terá nenhuma serventia caso os alunos não queiram pagar pelas 5 horas/ aula facultativas no aparelho a partir de setembro.
"O software não é meu, eu pago por ele. Se ele não tiver ali, só terei três telas, uma volante e um banco", lamenta o empresário
Alguns CFCs no Paraná, e em outras localidades, entraram com um mandado de segurança para não usar os simuladores. E por força de uma liminar, conseguiram funcionar sem o equipamento.
Ideal para quem nunca dirigiu
Estudiosa em assuntos relacionados ao trânsito e à capacitação de profissionais do volante, Roberta Torres defende a presença de simuladores e afirma que o modelo brasileiro atende à pessoa que nunca pegou num carro.
"Quem critica o simulador dizendo que não é eficaz, provavelmente não desenvolveu um estudo, ou se baseou numa pesquisa, que demonstrasse a ineficácia", pondera.
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Ela explica que no simulador o aluno terá conhecimentos bem específicos desse início da condução e num ambiente seguro e controlado. E depois vai para a prática para aperfeiçoar os conhecimentos que adquiriu.
"É uma ferramenta metodológica eficaz. Apresenta situações para trabalhar a percepção de risco com o aluno, mas sem colocá-lo de verdade ao perigo", ressalta Roberta, que estuda a aplicação dos simuladores desde 2014 e vê como uma etapa importante no processo de formação do condutor.
A observadora certificada pelo Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV) diz que há referências bibliográficas que compravam que, quando bem utilizado, o equipamento traz resultados positivos. "Na evolução do condutor ao sair da fase da teoria e ir para a prática", destaca.
De acordo com ela, é possível criar condições de chuva, neblina, ultrapassagem, que se vivenciadas antes prepara o aluno para a prática, para a próxima etapa, pois ele irá recordar o que foi feito no simulador.
Sobre a alegação do ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, de que o simulador não é utilizado em outros países, Roberta discorda. Ela cita França, Alemanha e Argentina como nações onde o aparelho está presente na formação do aspirante a motorista.
Instrutor e aluno rebatem especialistas
Se para os especialistas ouvidos pela reportagem, o simulador, se bem utilizado, pode ser importante para a formação do motorista, o mesmo não pensa o instrutor Edison Correia Júnior, de Curitiba, que atua na linha de frente do processo nas autoescolas.
Com a experiência de 11 anos na área, ele afirma que apenas um em cada dez alunos termina o curso admitindo que o simulador contribuiu para melhorar a direção e encarar o trânsito.
"Quando o aluno vai para para as aulas práticas na rua é como se não tivesse passado pelo aparelho, sai do equipamento totalmente cru", aponta o profissional.
Edison afirma que é melhor ter mais cinco aulas na rua do que no simulador, que foge da realidade. "Já começa errado nos pedais, pois são todos no mesmo nível de altura, enquanto que no automóvel o acelerador fica mais no fundo, para não confundir o pé. Acaba, na verdade, distorcendo a realidade", ressalta.
Pedro Franzoi, de 19 anos, fez autoescola recentemente em Curitiba e passou pelo simulador. Na opinião dele, o dispositivo tira a sensação de responsabilidade, uma vez que o aluno não está sendo avaliado.
"É comum bater durante a simulação e nada acontecer. É como se estivesse num videogame", conta.
Para o motorista recém-habilitado, a maior dificuldade na aprendizagem não é saber ou não dirigir, mas o medo de encarar o trânsito. E no simulador, não se perde esse medo.
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