Ao mesmo tempo que o mercado automotivo no Brasil dá amplo sinais de recuperação nas vendas, com uma projeção de 12% no crescimento em 2019 em relação ao ano passado, a indústria vai na contramão com duas notícias que abalaram o setor nos últimos dias: a polêmica ameaça da General Motors em sair do Brasil e o encerramento das atividades da fábrica da Ford em São Bernardo do Campo (SP).
Como explicar esses dois cenários antagônicos, afinal a volta do consumidor às lojas não deveria oxigenar as finanças das montadoras, que alegaram prejuízos financeiros nos últimos anos? Não, necessariamente.
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Vender mais veículos não significa pender a balança financeira para o lado positivo, pelo menos a curto e médio prazo. Há uma equação mais complicada por trás disso.
A Chevrolet, controlada pelo GM, é líder de emplacamentos no mercado brasileiro, com 17,58% do mercado em 2018. De quebra, tem no seu hatch compacto Onix o campeão geral no ranking de vendas há quatros anos, caminhando a passos largos para o título pelo quinto ano consecutivo.
Então o que justifica o presidente da GM Mercosul, Carlos Zarlenga, cogitar que a marca poderia ir embora do país?
Na verdade o executivo ecoou uma declaração da presidente mundial da fabricante, Mary Barra, de que a companhia estaria revendo suas operações na América do Sul, uma vez que não pretendia “investir para perder dinheiro”.
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Os prejuízos registrados no Brasil nos últimos três anos “não podem se repetir”, escreveu Zarlenga no comunicado interno distribuído a seus funcionários.
É sim possível que a Chevrolet esteja no vermelho mesmo com o Onix e Prisma figurando entre os modelos mais vendidos.
E aí é que está o problema. O foco da GM é quase todo voltado para essa família de modelos compactos, com tíquete médio baixo, o que reflete numa menor margem de lucro.
Sem contar que uma parcela dessas negociações acontecem por meio da venda direta (para frotistas, taxistas, pessoas com deficiência etc), reduzindo ainda mais a rentabilidade - 41% dos compradores do Onix e 44% do Prisma usaram no ano passado a modalidade que oferece descontos médios de 30% sobre o valor de tabela.
Concorrência força mudança de estratégia
Mas não é só isso. A chegada de novos concorrentes a partir dos anos 2000 também diversificou a oferta para os consumidores, antes habituados a terem no cardápio apenas produtos da Chevrolet, Volkswagen, Fiat e Ford.
Na opinião de Antonio Jorge Martins, coordenador de cursos automotivos da FGV (Fundação Getúlio Vargas), ouvido pelo site Quatro Rodas, a competitividade hoje em dia está bem mais elevada, por isso as fabricantes tradicionais precisam se adaptar à nova realidade e repensar sua visão estratégica diante de um consumidor que aprendeu a ser mais exigente na sua escolha.
A Volkswagen, por exemplo, abandonou a imagem de marca popular, conquistada à época de Fusca, Kombi e Gol, para direcionar seus investimentos em produtos de maior valor agregado.
É o caso de Polo e Virtus, sucessos em seus segmentos, além de apostar numa linha de cinco SUVs até 2020 - novo Tiguan (já lançado), T-Cross (que estreia em abril), além de Tarek, T-Trak (SUV do up!) e Atlas.
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Os utilitários, meninas dos olhos do mercado brasileiro, certamente são mais lucrativos que carros de entrada. Há ainda a picape intermediária Tarok, que pretende surfar no sucesso da Fiat Toro como um produto inovador e moderno.
“Vamos investir em segmentos que sejam rentáveis, cujos carros são desejados pelas pessoas”, destacou Pablo Di Si, presidente da Volkswagen no Brasil.
Não por acaso, as vendas da VW cresceram 35% em 2018 comparado ao ano anterior, mais que o dobro dos 14,6% registrados pelo mercado. A marca alemã também atingiu 15,90% de participação, tirando a Fiat da vice-liderança.
“Se eu fico vendendo carros populares e perdendo dinheiro, é claro que o acionista que investe na montadora não vai ter retorno”, salientou Di Si.
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Para Antônio Jardim, produtos fortes em todos os segmentos é garantia de solidez da montadora e rápido retorno nos investimentos. Ainda mais que os intervalos de atualização dos veículos estão cada vez menores, exigindo aportes financeiros mais frequentes.
A GM também abriu os olhos para essa nova estratégia e apostará em modelos derivados da plataforma GEM (Global Emerging Market), desenvolvida para mercados emergentes, entre eles o Brasil.
A moderna arquitetura elevará o nível construção e segurança dos veículos, como fez a VW com a multiplataforma MQB.
Da GEM sairão as gerações atualizadas de Onix e Prisma (ainda neste ano), dois novos SUVs e uma picape intermediária, posicionada entre a Montana e a S10 - esses últimos entre 2021 e 2022.
Será esse time o responsável por tornar as vendas da empresa norte-americana consistentes e rentáveis nas diferentes categorias do mercado.
Com um nova linha de produtos já anunciada, a ameaça de saída da GM do Brasil não passou de uma estratégia para obter diminuição nos custos em toda a cadeia do negócio - do fornecedor ao concessionário.
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Os funcionários abriram mão de benefícios e direitos e aceitou reduzir o salário na fábrica de São José dos Campos (SP); os lojistas passaram a trabalhar com margens e comissões menores; e os governos estaduais negociam incentivos e reduções tributárias.
FORD TEM FUTURO INDEFINIDO
Já a situação da Ford é um pouco mais complicada. A fábrica fechada no ABC paulista produzia caminhões e também o hatch premium Fiesta.
O modelo era canibalizado pela Ka, carro mais vendido da marca, que estreou em 2018 o novo motor 1.5, de três cilindros e 136 cv, mais eficiente que o 1.6, de 128 cv do Fiesta.
E o Ka ainda incorporou o câmbio automático de seis velocidades e conversor de torque, bem mais confiável que o polêmico Powershift, automatizado de dupla embreagem que teve a imagem arranhada por apresentar problemas num passado recente.
Com os prejuízos seguidos na América do Sul, que somam US$ 4,9 bilhões entre 2012 e 2018, a Ford se viu obrigada a estancar a sangria de perdas. Além do Fiesta, a marca já havia confirmado o fim da produção do Focus na Argentina, decretando a saída de cena dele no Brasil (hatch e sedã).
Ainda existe a incerteza em relação ao Fusion, que deixará de ser feito no México devido à decisão da Ford em acabar com os seus carros de passeio nos EUA.
Por lá, apostará somente em picapes, SUVs e veículos comerciais, além de Mustang e Focus Active (versão aventureira).
A fabricação do sedã deve passar para a China, o que pode encarecer o sedã médio por aqui e torná-lo inviável.
E assim como a GM, a Ford também concentra seus esforços em veículos de entrada. O Ka e sua variante sedã responderam por 63% (142,3 mil) de toda a gama da marca vendida no país no ano passado (226,4 mil).
Para piorar, o cliente do compacto são locadoras, segundo afirmou Lyle Watters, presidente da marca para a América do Sul. Isso significa uma lucratividade ainda mais baixa.
Só que diferentemente da GM e Volks, a Ford não anunciou uma reformulação em seu portfólio, capaz de fazê-la sonhar na briga pela liderança em alguns segmentos, oferecendo o tal “produto rentável”.
O EcoSport deve ser renovado de alguma forma, mas sem grandes pretensões. Outrora uma mina de dinheiro para fabricante, o SUV não consegue recuperar o terreno perdido há tempos para a concorrência, que não para de crescer - findou 2018 na sexta posição de vendas entre os SUVs.
A picape Ranger também está longe das líderes em sua categoria. A próxima geração do modelo dará origem à nova Amarok, como um novo produto da recém-aliança global com a Volkswagen.
Restam ainda o esportivo Mustang, que parece ser o único da gama Ford a arrancar o sorriso dos executivos brasileiros, e o quase ‘invisível’ crossover Edge.
Reestruturação para os novos tempos
No entanto só a atualização da gama não é capaz de aliviar as perdas verificadas no período mais forte da crise no Brasil, entre 2014 e 2017, além da recessão que assola a economia argentina, o segundo mercado mais importante na América do Sul.
Nesta conta também é preciso inserir a reestruturação que as grandes fabricantes estão promovendo em todo mundo e que também respinga no Brasil.
Para Paulo Cardamone, diretor de estratégia da consultoria Bright, as marcas buscam recuperar a saúde financeira para atender a maior revolução tecnológica pela qual o automóvel já passou.
O especialista fez referência ao forte investimento na chamada “mobilidade inteligente”. Nunca se destinou tantos recursos como agora para o desenvolvimento de veículos elétricos e autônomos e em soluções de compartilhamento e conectividade.
A GM aplicou recentemente mais de US$ 1 bilhão na compra da Cruise e da Strobe, empresas do ramo de veículos autônomos.
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A Ford, por sua vez, adquiriu no ano passado a Spin (scooters elétricos), a Autonomic (automação) e a TransLoc (apps de mobilidade).
E retorno disso, por ora, é quase zero, uma vez que a demanda de carros elétricos está engatinhando na maioria dos mercados mundiais e o autônomo ainda vai demorar para chegar às lojas.
Fábricas ociosas
A saída para fomentar essa nova mobilidade e recuperar a saúde financeira com as crises recentes é enxugar parte das atividades, especialmente as mais antigas, e fechar unidades ociosas pelo planeta.
A GM anunciou o fim de pelo menos uma dezena de fábricas nos EUA, Canadá, Coreia do Sul e Austrália. A de São José dos Campos (SP) corria o risco de ter o mesmo fim caso os funcionários não fizessem concessões em seus direitos e benefícios.
No interior paulista são feitas apenas a picape S10 e o SUV Trailblazer e é uma das plantas brasileiras que contribuem para o porcentual de 41% de capacidade ociosa na fabricação de automóveis leves no país. No segmento veículos pesados, esse índice sobe para 68%.
A unidade da Ford em São Bernardo era outra que engrossava essa lista. Trabalhava em turno único, alternando ociosidade e produção. Tinha dias que fazia o Fiesta, em outros os caminhões da linha Cargo e da Série F (leve e semileves).
Aliás, era um dos poucos mercados que ainda produzia caminhões da marca norte-americana. “Seria necessário investir uma quantia expressiva para modernizar a fábrica e atender às demandas do público brasileiros, disse Lyle Watters.
Só por deixar o segmento de caminhões na América do Sul (a fábrica paulista abastecia outros mercados), a Ford prevê um impacto perto de US$ 460 milhões em despesas recorrentes que deixarão sair dos cofres da empresa.
Esse cenário de ociosidade já começa a mudar, mas só por volta de 2025 ele voltará ao patamar de 2010, quando Brasil chegou a ser o quarto maior mercado do mundo.
A unidade da Volkswagen no Paraná era outra com operações pouco lucrativas para a matriz. No ano passado, produziu durante 147 dias e o restante ficou parado. Com a produção do SUV compacto T-Cross desde janeiro, o salto em 2019 será para 252 dias de atividades, com a retomada do segundo turno a partir de abril.
A VW espera voltar a lucrar com a operação brasileira. Só nos dois últimos anos, a empresa fez um investimento de R$ 7 bilhões no país. E já projeta um novo ciclo de investimentos a partir de 2020.
A GM teria admitido realizar um aporte de R$ 10 bilhões a partir de 2020, sendo R$ 5 bilhões para a modernização e produção da nova geração da S10 em São José dos Campos.
O ciclo atual de investimentos da ordem de R$ 13 bilhões foi aplicado na fábrica de Gravataí (RS), que fará a próxima geração de Onix e Prisma, na de motores, em Joinville (SC) , na de São Caetano do Sul (SP), que é a sede para as operações na América Latina, além da unidade na Argentina.
A Ford continuará sua fase de enxugamento de gastos na região sul-americana, mas manterá a planta de Camaçari (BA) para carros, a de Taubaté (SP) para motores e a de Pacheco (Argentina) para picapes.
Ou seja, essas fábricas terão vida longa, recebendo aportes na modernização para produzirem novos produtos.
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