Moisés de Souza foi imediatamente condenado a dois anos de reclusão por furtar R$ 0,15 do bolso de uma pessoa caída no chão. Antônio Luís foi imediatamente condenado a 2 anos e 8 meses de prisão por furtar uma colher de pedreiro no valor de R$ 4. Diogo da Silva foi condenado a 1 ano e 4 meses de reclusão e teve habeas corpus negado por tentar furtar 4 barras de chocolate em um mercado. Jairo Bonfim foi imediatamente condenado a 1 ano e 8 meses no semiaberto por furtar e devolver depois uma carteira com R$ 1,80 e cartões. Ricardo Mansur demorou 20 anos para ser condenado a 5 anos e meio de semiaberto pelo desvio de mais de R$ 42 milhões.
No Brasil pós-Lava Jato, quem tem dinheiro, prestígio e poder passou a receber punições por crimes. Mas elas não chegam nem perto do rigor da lei que pesa sobre o cidadão comum.
Os casos que eu relatei no primeiro parágrafo são os chamados “crimes de bagatela” que foram analisados em recursos ao STF e STJ. Todos casos reais, que mereciam punição, mas a disparidade tanto do tamanho da pena quanto do tratamento dado ao réu é absolutamente chocante. Infelizmente, por aqui ainda vale a máxima “todos são iguais perante a lei, mas uns são mais iguais que os outros”.
No final de 2017, meu colega Lúcio Vaz fez um extenso e excelente levantamento organizando 150 casos de crimes de bagatela que chegaram aos tribunais superiores. Num artigo revelador, além de contar os casos individualmente, ele teve a paciência de organizar os tipos de recursos e crimes, chegando a conclusões surpreendentes como a de que o chocolate em barra é o objeto do desejo mais comum dos que vão para trás das grades por pequenos furtos. Recomendo vivamente a leitura:
LEIA MAIS: “Crimes de bagatela”: tribunal superior julga de roubo de galinha a furto de moedas
É sempre conveniente lembrar que a culpa e as penas não são estipuladas pelos tribunais superiores, são definidas pelas instâncias inferiores. Apenas questões técnicas são julgadas por esses tribunais. A questão é que, quando se analisa a tramitação completa dos processos, fica escancarado que temos duas Justiças no Brasil: a do andar de cima e a do andar de baixo.
No andar de cima, temos uma série de políticos choramingando a dureza das penas que lhes são impostas depois de vilipendiar direitos sobretudo da população mais pobre, abastecendo o próprio bolso com o pão tirado da mesa do povo. Não raro, essas penas são menores e mais brandas que as impostas a este mesmo povo se, num momento de aperto ou loucura, resolver furtar uma barra de chocolate em um mercado.
A diferença de tratamento entre poderosos e cidadãos comuns faz com que eu não tenha absolutamente nenhuma pena dos políticos e poderosos que reclamam de perseguição do Judiciário em processos de improbidade. Eles nem sabem o que é rigor.
Recentemente, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, dedicou 17 páginas a explicar numa sentença por que a pena de 5 anos e 6 meses de prisão no semiaberto pelo desvio de R$ 42 milhões de reais há 21 anos não vai ser nem extinta por prescrição nem seu cumprimento será ainda mais adiado, como pediu a defesa. Fosse a pena proporcional à das histórias sinistras envolvendo barras de chocolate, o empresário não teria ficado livre, leve e solto desde 1998 enquanto seus excelentes advogados trabalham.
O caso de Ricardo Mansur é tão antigo que os jovens provavelmente não se lembram nem das empresas envolvidas no escândalo: Banco Crefisul, Mesbla e Mappin. Os primeiros problemas do empresário com a lei vieram quando ele não conseguiu honrar junto ao Banco Bradesco os empréstimos feitos para a aquisição das duas gigantes do varejo brasileiro, Mesbla e Mappin. Mas o processo atual é da outra empresa.
Qual o grande problema com o Banco Crefisul? Em 1998, 21 anos atrás, na tentativa de mascarar resultados financeiros desfavoráveis, o banco começou a gerar lucros artificiais por meio de empréstimos a empresas do mesmo grupo, o que é proibido pelo Banco Central. As operações de empréstimo tinham como objetivo investir em ativos do próprio grupo, ou seja, nada estava crescendo, evoluindo ou gerando riqueza, apenas documentos eram formalizados como se isso estivesse ocorrendo.
O resultado é que os balanços gerados eram positivos e, com a falsa impressão de lucro, o Banco Crefisul continuava apto a captar dinheiro fora do grupo, oferecendo garantias artificiais. Segundo o Ministério Público, o esquema de empréstimos ilegais movimentou R$ 42 milhões em valores não corrigidos de 21 anos atrás.
Como em todos os processos envolvendo poderosos, não é possível obter explicações razoáveis sobre os mais de 20 anos de duração mas, ainda assim, a defesa considera o cumprimento da pena antecipado demais.
Ricardo Mansur foi condenado pela primeira instância da Justiça Federal a 5 anos e 6 meses de reclusão em regime semiaberto, além do pagamento de 107 dias-multa no valor de 1 salário mínimo cada pela prática de gestão fraudulenta, tendo o direito de recorrer em liberdade, o que ele fez. O Tribunal Regional Federal da 3a Região reduziu a multa para 18 dias-multa no valor de 1 salário mínimo cada, manteve a pena do semiaberto e determinou o imediato início do cumprimento da sentença em agosto do ano passado.
A defesa entrou com embargos de declaração no TRF-3 e eles foram rejeitados. A defesa então entrou com embargos de declaração dos embargos de declaração e o tribunal não só rejeitou como expediu um novo mandado de prisão. Os advogados de Ricardo Mansur entraram com um habeas corpus no STJ, alegando constrangimento ilegal por ter de cumprir a pena antes do trânsito em julgado.
O ministro do STJ Rogério Schietti Cruz decidiu monocraticamente contra a defesa, mantendo a decisão do TRF-3. A defesa entrou então com um Agravo Regimental no STJ dizendo que Ricardo Mansur fez 70 anos em 1o de abril de 2018 e, portanto, o prazo de prescrição do crime deveria ser reduzido à metade, ou seja, já estaria prescrito. Também insistiu que se reconsiderasse a história da prisão em 2a instância. O caso foi então para a Sexta Turma do STJ, que manteve a decisão individual do ministro: a multa e o imediato início do cumprimento da pena.
Foi então que a defesa de Ricardo Mansur recorreu ao STF pedindo que “seja reconhecida a extinção da sua punibilidade em razão da prescrição, nos termos dos arts. 107, IV, 109, III, c/c art. 115, todos do CP, ou ainda para que seja revogada a determinação de execução antecipada da reprimenda a ele imposta, a qual deverá ficar condicionada ao eventual trânsito em julgado da condenação ou, pelo menos, até o esgotamento da instância do Superior Tribunal de Justiça.”
O caso foi então para as mãos do ministro Alexandre de Moraes, que lembrou na sentença o fato de que a conta dos 70 anos está um pouco equivocada. A prescrição é reduzida pela metade se a pessoa tem 70 anos na data da condenação, ou seja, quando decidido já na primeira instância que é culpada, não ao final do processo.
“Ressalto que, em decisões recentes, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL tem-se posicionado no sentido de que a regra de redução do prazo prescricional estabelecida no art. 115, do Código Penal, apenas beneficia o agente que já tenha 70 anos de idade na data da condenação. Nesse mesmo sentido, confiram-se: HC 135.208-AgR, Rel. Min. EDSON FACHIN, Primeira Turma, DJe de 3/3/2017; HC 135.671-AgR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, DJe de 16/2/2017; HC 132.788-AgR, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe de 25/8/2016; HC 126.291-AgR, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, DJe de 26/2/2015; HC 117.386, Rel. Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, DJe de 8/9/2014; RHC 125.565, Rel. Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, DJe de 20/5/2015”, diz a sentença.
A sentença de Alexandre de Moraes é importante porque traz a análise da prisão em 2a instância à luz dos tratados internacionais de Direitos Humanos assinados pelo Brasil.
“Não há nenhuma exigência normativa, seja na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), seja na Convenção Europeia dos Direitos do Homem que condicione o início do cumprimento da pena ao trânsito em julgado da sentença condenatória. Ambas – respectivamente artigo 8.2 e artigo 6º2 – consagram o princípio da presunção de inocência até o momento em que a culpabilidade do acusado for legalmente comprovada, respeitados os demais princípios e garantias penais e processuais penais já analisados”, diz o ministro Alexandre de Moraes.
Esta é a tese sustentada pela primeira vez no STF pelo ministro Dias Toffoli: o trânsito em julgado não é o final de todos os recursos, mas o final da possibilidade de se reverter a decisão de culpa, ou seja, o momento em que já não é mais possível inocentar alguém por meio de recursos judiciais. Isso traz um padrão mais rígido do que começar a cumprir a pena em 2a instância, implica que homicídios julgados pelo Tribunal do Júri tenham cumprimento da sentença a partir da 1a instância, já que a decisão do júri é soberana.
Segundo declarou diversas vezes o ministro Dias Toffoli, seria pedagógico para um país com mais de 60 mil assassinatos ao ano e nem 10% deles levados à luz da Justiça, parar de ver criminosos condenados por homicídio saindo livres pela porta da frente do Tribunal do Júri para apelar em liberdade, sendo que sua culpa não será mais revertida.
Fiz questão de relatar nos pormenores toda a novela jurídica das instâncias superiores, que durou menos de 1 ano, tanto para que se imagine o que ocorre nas instâncias inferiores – que duraram 20 anos – quanto para que se avalie a diferença de tratamento obtida por réus que têm recursos financeiros para bancar os melhores advogados em recursos jurídicos infindáveis a ponto de irritar os juízes pela insistência.
Enquanto esse processo corria, Ricardo Mansur dava seus pulos para manter seu padrão nababesco de vida, o que lhe rendeu mais problemas com a Justiça
O mais famoso é o escândalo que estourou em 2010 envolvendo o arrendamento da Usina Galo Bravo, administrada pelo empresário durante 11 meses. Os donos do negócio alegaram não ter recebido mais de 30% do pagamento prometido pelo arrendamento, abandonado por Ricardo Mansur. Os problemas de gestão foram detectados por meio de dados do computador que ele deixou na empresa, revirado do avesso pelos donos na retomada.
Verificou-se que ele repassou pelo menos R$ 2,75 milhões para uma empresa de investimentos que tem em seu nome e outros R$ 95 mil para contas pessoais. Além disso, esbanjou com luxo durante os 11 meses em que o negócio durou. Gastou R$ 100 mil com aluguel de helicópteros, R$ 285 mil para comprar um carro de luxo e R$ 800 mil na compra e decoração de uma casa em Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
Os gastos pessoais com luxo chegaram a pelo menos R$ 4,8 milhões e continuaram sendo feitos até na fase em que os funcionários da usina e os cortadores de cana contratados pela safra estavam sem receber.
Quando o escândalo de Ricardo Mansur estourou, a decisão de colocá-lo 5 anos e 6 meses no semiaberto seria capa de todos os jornais. Caso o processo tivesse sido célere, talvez a vida dos cortadores de cana da Usina Galo Bravo fosse menos sofrida. O processo durou tanto tempo que o Brasil até esqueceu quem era a pessoa e quais foram os seus crimes. Não há justificativa para isso, sobretudo quando os cidadãos comuns são tratados com o mais absoluto rigor pelo Judiciário a qualquer pequeno desvio. Justiça que tarda falha.
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