Maycon Wesley, 27 anos, cantor em cultos evangélicos e tatuador, nunca havia cometido um crime. Sua vida era parecida com a de milhões de jovens brasileiros de periferia até ser transformado no vilão do Brasil, ao lado do pedreiro Ronildo, 29, autor da filmagem e que já foi condenado por roubo de uma bolsa.
Os dois rapazes de São Bernardo do Campo estão presos acusados de tortura, crime inafiançável e hediondo, por terem feito uma tatuagem na testa de um adolescente de 17 anos, usuário de drogas desde os 12 e viciado em crack, que acusam de tentar roubar uma bicicleta. Em vez da lei de talião, preferiram a lei de Tarantino.
A família de Maycon tem todos os motivos para duvidar do sistema penal brasileiro, que inclui justiça, polícia e executivo. Sua mãe, Rosilene, foi vítima de um sequestro relâmpago e agredida na frente dele. Ela perdeu o carro num assalto à mão armada. Num terceiro episódio, sua casa foi invadida por ladrões. Segundo Rosilene, a polícia sequer atendeu seu chamado.
Rosilene, Maycon e Ronildo não estão sozinhos. Numa pesquisa realizada pelo Fundação Getúlio Vargas e divulgada em outubro do ano passado, apenas 29% dos brasileiros dizem confiar na justiça e 25% na polícia. São números que merecem atenção, ainda mais se comparados aos 59% que dizem confiar nas Forças Armadas e 57% na Igreja Católica. Não há dúvidas de que a população não vê o aparato de segurança e justiça do estado com a mesma devoção que as elites urbanas e o jornalismo.
É claro que Maycon e Ronildo erraram, mas a visibilidade do caso fez com que o estado agisse rápido contra eles. Dias depois do vídeo ter caído nas redes sociais, ambos foram presos e vão responder na justiça por tortura, um crime com pena que pode chegar a 10 anos. Há relatos de que abutres dos “direitos humanos” fazem plantão na delegacia em que foram presos, rotulando ambos de torturadores como “os da ditadura” e pedindo pena máxima.
Os criminosos que agrediram a mãe de Maycon no sequestro relâmpago, os assaltantes que levaram seu carro e os invasores que arrombaram sua casa não foram nem investigados e estão soltos cometendo mais crimes violentos. Joesley Batista, bilionário envolvido em incontáveis crimes de corrupção, curte o dolce far niente no exterior com o beneplácito da justiça.
Os monstros que arrastaram o menino João Hélio, de seis anos, preso no cinto de segurança do carro dos pais até que ficasse completamente desfigurado, já estão em regime semiaberto menos de 10 anos depois do crime. O assassino do universitário Victor Hugo Deppman, morto a sangue frio na porta de casa por um “menor” a três dias de completar 18 anos, já está solto. Os adolescentes que estupraram quatro meninas no interior do Piauí e depois jogaram duas delas de um barranco de cinco metros em 2015 já podem estar arrumando as malas para voltar às ruas. A lista de casos em que a justiça foi leniente com crimes bárbaros é grande demais para ser ignorada.
Mais do que um caso de justiçamento, como tantos que acontecem fora do olhar das câmeras e muito mais graves e violentos que este, o episódio serve como exemplo do fosso quase intransponível que existe hoje entre a vida das elites urbanas brasileiras e o dia-a-dia da população que não vê a justiça como um ente superior de razão.
O brasileiro vê o sistema penal como um corpo que muitas vezes perdoa ricos e poderosos, relativiza os crimes mais bárbaros de assassinos, sequestradores, estupradores e traficantes por ideologia, mas é implacável com réus de casos transformados em circos midiáticos como este em que os autores filmaram o próprio crime.
De um acerto de contas condenável entre jovens da Grande São Paulo e um adolescente drogado, o caso do jovem tatuado na testa foi transformado num escândalo sobre a revolta do cidadão comum em relação à inoperância do estado. Neste caso, claro, a elite urbana, o beautiful people, os ativistas de teclado e o jornalismo não podem perdoar jamais.
Maycon e Ronildo, nunca é demais repetir, deveriam ter chamado a polícia quando flagraram o adolescente tentando levar a bicicleta, mas poucos que estão ostentando indignação publicamente sabem o que aconteceria se a polícia realmente atendesse o chamado. Muito menos estão familiarizados com a situação real do sistema penal brasileiro.
Se o ladrão de 17 anos cometesse o furto e depois fosse levado para a delegacia, não aconteceria rigorosamente nada. Acredite: nada. Ele seria levado ao juiz da vara da infância e juventude e tomaria uma mera advertência, medida sem qualquer efeito real, e liberado. No jargão dos promotores, ele receberia um “ai ai ai” e voltaria às ruas como se nada tivesse acontecido. O furto praticado por menores de 18 anos no Brasil, segundo quem vive a rotina destes casos no judiciário, não dá um único dia de internação para o infrator.
A impunidade, diga-se, não é apenas para adolescentes. Um furto cometido por réu primário, de qualquer idade, não gera sequer um processo. Um assalto à mão armada, quando o bandido é preso, rende menos de onze meses de cumprimento de pena em regime fechado. O criminoso que colocou uma pistola na cabeça do cidadão para roubar, se for detido, vai ser liberado para as ruas em menos de um ano, muitas vezes voltando a cometer crimes iguais ou piores. O estado fica como patrocinador do seu hotel noturno, quando o criminoso aparece para dormir.
Dos 60 mil homicídios e latrocínios praticados no Brasil anualmente, estima-se que menos de 5% são punidos. Você entendeu perfeitamente: 95% destas mortes ficam impunes, como os que matam diariamente pais, filhos, irmão, maridos, esposas, amigos e colegas de trabalho da população cada vez mais aterrorizada e descrente.
Se tudo isso já não bastasse, nada se compara ao que acontece hoje no Brasil com os protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente que praticam crimes hediondos. De tão absurdo, é difícil acreditar que as instituições do país estejam num grau tão avançado de putrefação e que o aparelhamento de extrema-esquerda tenha contaminado o sistema penal do país de uma forma quase incurável.
Hoje um bandido de 17 anos de idade que comete crimes, mesmo os mais violentos como homicídio, latrocínio, sequestro e estupro, pode ser condenados inicialmente a no máximo três anos de internação numa instituição como a Fundação Casa, antiga FEBEM, para depois ser “avaliado” em poucos meses e sair. Ao final do processo, ele estará com a ficha limpa e sem nenhum registro dos crimes praticados, já que a lei atual proíbe o juiz de levar em conta a gravidade do crime e os antecedentes do menor. É tudo apagado como se nada tivesse acontecido, como se suas vítimas nunca tivessem existido.
Com a alegada superlotação destas instituições, os infratores que cometeram crimes como estes estão sendo liberados não em três anos mas em cinco ou seis meses de internação. No Rio de Janeiro, muitas vezes não ficam um único dia presos depois da audiência com o juiz. Um delinquente de 17 anos no Brasil que sequestra duas meninas de 15 a caminho da escola, estupra, mata e depois joga os corpos num rio, se descoberto, estará livre antes do Natal deste ano e com a ficha limpa. É este o valor da vida humana para quem tem o infortúnio de cruzar com um facínora protegido pelo ECA.
Em resumo, este é o Brasil que não aparece nas manchetes, não vira hashtag e não ganha editorial de jornal. Este país em que Maycon vivia, aquele que sequer investiga os sequestradores que agrediram sua própria mãe na sua frente. Ninguém precisa explicar para Maycon como este país trata seus bandidos de estimação, como relativiza seus crimes, como é refém de ideologias, e como julgará seu caso.
Maycon e Ronildo erraram, não custa repetir, mas a execração pública deles é ainda mais absurda do que o crime que praticaram. As elites urbanas acreditam que assassinar as reputações de Maycon e Ronildo servirá como exemplo para que novos justiçamentos não ocorram enquanto ostentam virtudes e vestem sua indignação de butique, como se a população desse qualquer importância para sermões de quem quer censurar a atitude impensada dos rapazes de dentro de seus carros blindados.
O problema mais grave do Brasil é a impunidade, como o TSE fez questão de nos lembrar recentemente. Se a rotina de quem mora em condomínios monitorados 24 horas por dia, tem carro blindado e frequenta locais bem iluminados e vigiados, não está fácil, tente imaginar como era a de Maycon antes de apontar o dedo para ele. Essa gente fina e elegante que ama a humanidade mas tem sérias dificuldades em amar o próximo não precisa perdoar Maycon, ela poderia apenas fazer algum esforço para tentar entender como era a sua vida antes dele fazer o que fez.
A energia gasta em condenar os rapazes de São Bernardo do Campo na imprensa e nas redes sociais seria melhor empregada na luta pela completa reformulação do sistema penal do país, pela revisão das respectivas leis e códigos que permitem o atual descalabro. É preciso fazer de tudo pela volta do bom senso, da racionalidade e do respeito à função primordial do estado e que justifica sua existência: garantir o direito à vida da população, a mesma que trabalha metade do ano para pagar impostos e tem o pior retorno do mundo deste investimento.
Maycon e Ronildo vão responder pelo que fizeram, mas a punição de ambos não contribui em absolutamente nada para a melhoria da segurança da população brasileira. Muito menos diminuirá o número de justiçamentos. No máximo, eles deixarão de ser filmados.