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“Não deixe o samba morrer”, um hino conservador

Bloco Fogo e Paixão - Centro - Foto: Fernando Maia | Riotur 05.02.2018 - Carnaval de Rua - Fogo e Paixão - Centro - Rio de Janeiro. (Foto: )

Antes de dizer que samba e política não se misturam, faço um convite: preste atenção na letra de “Não deixe o samba morrer”, de Edson Conceição e Aloísio Silva, um dos clássicos do gênero. Você pode se surpreender.

Detesto essa mania de politizarem tudo, mas em tempos de Carnaval muita bobagem acabou sendo escrita sobre o assunto. É por isso que temos que separar a legítima reverência pela alta cultura ocidental, da qual o Brasil é um contribuinte pouco relevante, de um elitismo afetado e incapaz de enxergar méritos, quando existem, na cultura popular.

Quem não percebeu até agora o quanto o samba de raiz é conservador, o quanto enaltece as tradições, a “velha guarda”, os “bambas”, não sabe do que está falando. O samba é uma ótima ferramenta, se bem usada, para explicar ao brasileiro, didaticamente, o que é o conservadorismo político de matriz burkeana. E como ele não é estranho a sua própria cultura.

“Não deixe o samba morrer” é um hino conservador, em poucas palavras, por homenagear a contribuição das gerações anteriores e por estabelecer a meritocracia como critério para que a cultura não “morra”. Mais do que isso, reconhece a cultura como definidora de uma sociedade e não a raça, os recursos minerais ou a economia. E ainda alerta para os riscos de se negligenciar a preservação do conhecimento acumulado pelos mais antigos.

A letra começa assim:

“Não deixa o samba morrer
Não deixa o samba acabar
O morro foi feito de samba
De samba para gente sambar”

Ao dizer que “o morro foi feito de samba”, os autores reconhecem que o local físico (“o morro”) não é nada perto dos bens imateriais que caracterizam e definem sua gente. O que importa, o que “faz” (constitui) o “morro”, é o samba, é a cultura que precisa ser preservada. É o argumento conservador na essência, daqueles que Edmund Burke ou Roger Scruton aplaudiriam de pé.

Quando os americanos dizem que seu país é uma “idéia”, o que se quer consolidar é a premissa de que a América não é seu espaço físico, mesmo que este seja evidentemente relevante, ou a cor da pele de seus habitantes, muito menos as riquezas materiais acumuladas. A América é “feita” dos seus ideais, valores, tradições, crenças e princípios que podem e devem ser abraçados por seus imigrantes, exatamente como “o morro” que é “feito de samba”.

O tema central, que dá nome à música, é que a cultura que define o morro pode “morrer”. E vai morrer se você “deixar”. Nenhuma palavra sobre raça, apenas sobre arte e tradição. Mais conservador, impossível.

Os compositores reconhecem que uma cultura não tem vida eterna., ela “morre” se você se for negligente, se não cuidar dela, se não proteger, defender, lutar por ela, se não assumir para si a tarefa de identificar, reconhecer, valorizar e transmitir esta cultura para as próximas gerações. Sem o que identifica a “superestrutura” daquela comunidade, para usar o termo marxista, ela vai desaparecer a despeito de sua “infraestrutura”, do espaço físico e dos recursos acumulados.

A idéia central é coerente com o que Reagan se refere quando diz: “a liberdade está sempre a uma geração da extinção”, referindo-se a cultura que a civilização ocidental herdou dos gregos clássicos, dos valores judaico-cristãos, da Magna Carta, do Bill of Rights, da Revolução Americana, da abolição dos escravos, das grandes guerras, entre outros. A democracia liberal, um valor ocidental, pode morrer assim como o samba, basta ser atacada nas universidades, na cultura pop, nos jornais, sem que ninguém saia em sua defesa.

Culturas não passam para as próximas gerações pela corrente sanguínea, como o próprio Reagan complementou, é preciso ensinar às crianças o que ela é, o que significa, qual sua importância e porque ela deve ser preservada. Quem acredita em “sangue e solo” como definidores de uma sociedade ou nação, como os nazistas, não pode ser mais distante ideologicamente do que conservadores e sambistas.

A defesa da cultura não nada a ver com tradicionalismo tacanho, com aversão a mudanças ou com uma idealização utópica e reacionária do passado, um devaneio ideológico tão pernicioso quanto os revolucionários progressistas que veneram o futuro. Tanto o fetichismo com o passado quanto com o futuro são perversões políticas da mesma matriz autoritária e anti-liberal. O conservador preserva apenas o que funcionou, o que deu certo ao longo do tempo, e está aberto a mudanças desde que testadas e implementadas com sabedoria e prudência.

Cantar que uma cultura pode “morrer” serve de alerta aos que querem, por exemplo, repetir a fracassada experiência recente da Europa de abrir as porteiras indiscriminadamente para imigração em massa e irresponsável de povos francamente contrários à cultura ocidental mas que fornecem mão de obra barata para os humanistas de Davos. Sem assimilação, sem levar em conta a preservação da própria cultura, não é imigração, é invasão. Isso não tem absolutamente nada a ver com racismo ou xenofobia, como os inimigos da civilização ocidental querem que você pense.

“E quando eu não puder pisar mais na avenida
Quando as minhas pernas não puderem aguentar
Levar meu corpo, junto com meu samba
O meu anel de bamba, entrego a quem mereça usar
Eu Vou ficar
No meio do povo
Espiando
Minha escola perdendo ou ganhando
Mais um carnaval”

Neste belo trecho, a música canta nada menos que a meritocracia. Os compositores explicam em detalhes como a cultura deve ser preservada: os mais antigos, ao sentirem que não possuem mais condições de saúde para continuar carregando e celebrando a tradição, passam “a quem mereça usar”. Não a qualquer um, não a quem tem necessariamente a mesma cor, classe social ou nacionalidade. O anel é entregue a quem for digno de usar. Ênfase em “merece”.

O rito de passagem é simbolizado pelo “anel de bamba” que será dado ao representante da nova geração que fizer jus à distinção, uma honra que pressupõe responsabilidade, talento, comprometimento e dedicação. É como a cerimônia de coroação de um novo monarca, com a mesma carga simbólica.

A cultura escolhe e identifica seus defensores e guardiões numa verdadeira simbiose com eles. Sua preservação passa necessariamente pelo processo de escolha do novo aprendiz, como um Jedi que treina seu novo Padawan nos filmes clássicos da série Star Wars. Na atual e desastrosa temporada da franquia, as tradições da cultura Jedi são literalmente incendiadas e a força fica com uma “empoderada” que nunca fez um treinamento sequer, o que ajuda a explicar as reações negativas do público e dos fãs.

Após o ritual de entrega do “anel de bamba”, o antigo guardião não se retira totalmente, não abandona suas responsabilidades, não deixa para lá. A aposentadoria do conservador não é sinônimo de ócio. O mestre vai para o “meio do povo”, despido de qualquer vaidade, mas fica “espiando”, com a “escola perdendo ou ganhando mais um carnaval”, já que a preservação da cultura é mais importante do que a alegria fugaz de uma vitória numa competição pontual. A meta superior é a vitória do eterno contra o efêmero.

“Antes de me despedir
Deixo ao sambista mais novo
O meu pedido final
Não deixa o samba morrer
Não deixa o samba acabar”

A letra termina com um reforço do pedido ao aprendiz, é seu “pedido final”, é o que realmente importa. O velho sambista não cansará de repetir, o que vale é a preservação do que há de atemporal na alma e na essência do “morro”, da comunidade em que vivem, que é a cultura que está sendo passada a ele, aquela que foi testada e aprovada pelo tempo e pelo próprio “morro”. É o que define sua comunidade, numa simbiose completa, harmônica e pulsante entre indivíduos,  e cultura.

O novo sambista pode e deve inovar, mas ele precisa conhecer a tradição para transcender, ele não pode destruir o passado e todo aprendizado acumulado sob pena de deixar o próprio “morro” perecer.

Se isso não é um hino conservador, não sei o que é.

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