Colaboração de Camila Abrão
Valéria desembarcou no Brasil sentindo um alívio que não experimentava há tempo. Finalmente estava livre. Carregava nos braços o que tinha de mais precioso, a filha de 18 meses. Sua filha também estaria livre, pensou. Os quase 10 mil quilômetros entre Paris e Curitiba não eram nada. Cada minuto, das mais de 13 horas de viagem era um minuto mais próximo da segurança que a família poderia oferecer.
O ex-companheiro francês, B* lhe concedera dois meses. Tempo que valeria o documento que a autorizava deixar – e ficar – fora da França com a pequena N*. O preço exigido, comparado com tudo que tinha passado, foi barato: retirar o pedido de medida protetiva com o qual entraria na justiça francesa contra B*.
A história começou como muitas outras começam. Valéria Ghisi, uma professora universitária e psicóloga, vinda de uma família de classe média de Curitiba, decidiu continuar os estudos na França. E assim o fez. Não tinha planejado se apaixonar, mas evidente que esse é o tipo de coisa que não se planeja.
Agressões
Começou um relacionamento com B*, teve uma filha com ele e viu tudo desmoronar. O comportamento do ex-companheiro mudou, ele se tornou cada vez mais agressivo, até a situação ficar insustentável.
Valéria se viu em um país estrangeiro, com uma filha nos braços e longe de qualquer tipo de segurança. Não estava mais só, precisava lutar pela segurança da filha também. Fez o que pensou ser o certo: pediu ajuda às autoridades francesas e denunciou as agressões que sofria.
A investigação levou os policiais a entrevistarem os vizinhos, que confirmaram ouvir o calvário particular da psicóloga. B* não se controlava nem na presença da bebê. A situação perdurou até ele ser preso em flagrante por violência doméstica. Não era assim que Valéria tinha imaginado a vida.
“O que me choca mais nisso tudo é como eu, de vítima de violência doméstica comprovada me transformei em sequestradora da minha própria filha”
Os dois meses seriam a porta para um novo começo. Ela estava confiante, sem saber que esse não seria o começo que tanto ansiava. O ex-companheiro sabia que a intenção dela era ficar no Brasil, a “promessa” feita era que durante os dois meses eles trabalhariam para chegar a um acordo razoável para as questões práticas da separação. Com quem ficaria a guarda da filha? Como ficariam estabelecidas as visitas? Qual seria o valor da pensão?
Seria um longo tempo conversando e, apesar de tudo, Valéria estava disposta a não privar a filha do convívio paterno. Durante os dois meses ela tentou contato, mas a conversa nunca aconteceu. No final do “prazo” o ex-companheiro reapareceu, exigindo o retorno da filha. Afinal, ele não assinaria mais nenhum documento permitindo prolongar a estadia da criança no Brasil.
Batalha judicial
Começava ali a batalha de Valéria para garantir a guarda da filha. Ela entrou com um processo na Vara da Família do Paraná e permaneceu no Brasil. O entrave judicial estava apenas começando. Quase um ano depois da vinda das duas para Curitiba, o pai da criança entrou com um processo na Justiça Federal, apelando para a Convenção de Haia.
A Convenção de Haia é um tratado internacional assinado por vários países, inclusive o Brasil, que determina regras sobre a repatriação crianças em casos de sequestro internacional.
O processo que corre no âmbito federal tem prerrogativa sobre o estadual. Acusada de sequestrar a própria filha, a psicóloga apresentou todos os documentos que comprovavam as agressões ocorridas na França. Ela pediu que as autoridades francesas mandassem toda a documentação referente ao inquérito policial e a condenação de B* por violência doméstica. E eles enviaram, mas não adiantou.
Em novembro de 2016, quase dois anos e meio após Valéria voltar ao Brasil, a Advocacia-Geral da União decidiu pelo repatriação da criança. “O que me choca mais nisso tudo é como eu, de vítima de violência doméstica comprovada me transformei em sequestradora da minha própria filha”, diz Valéria, exasperada.
A juíza responsável pelo processo na Justiça Federal disse que só liberaria o retorno à Paris se fossem cumpridas condições para garantir a segurança e uma vida estável para mãe e filha, antes do mandado de busca e apreensão ser efetuado. A juíza se afastou temporariamente do cargo por conta da licença maternidade. O juiz substituto exigiu o retorno de Valéria com a filha, sem antes ter uma garantia de que a justiça francesa faria valer a salvaguarda.
O pesadelo em Paris
Valéria viu todos os planos que tinha de uma vida nova evaporarem. Seu pai, Ricardo MacDonald Ghisi, advogado e ex-secretário municipal do Governo, acompanhou todo entrave jurídico do caso e viu de perto o desespero da filha.
No dia 25 de novembro de 2016, Valéria e a filha, então com três anos e meio, voltaram para França. As mais de 13 horas de viagem dessa vez pareciam um suplício. Sem a salvaguarda homologada por um juiz francês, ela não tinha nenhuma garantia sobre seu futuro junto da filha, só sabia que teria de entregá-la para o pai. Ao desembarcar em solo francês, foi mais uma vez surpreendida. Além do processo na justiça federal brasileira, B* havia dado entrada em um processo penal na corte francesa a acusando mais uma vez de sequestro.
“Eu tive dois segundos para entregar minha filha para eles, que obviamente não queria ir. Era para ela ter ficado comigo e para ele ter as visitas”
Ela voltou para França achando que estava amparada por uma decisão da justiça brasileira, decisão essa que o pai de seu filha disse que cumpriria na frente do juiz. O que encontrou na chegada à França foi a polícia à sua espera com um mandado de prisão. “Eu tive dois segundos para entregar minha filha para eles, que obviamente não queria ir. Era para ela ter ficado comigo e para ele ter as visitas”, relembra a psicóloga. Valéria afirma que apesar do processo penal francês existir desde 2014, ela nunca teve acesso aos documentos ou sabia de sua existência.
Fora da prisão, por pouco
O pouco de sorte que a acompanhou foi um pressentimento que a fez carregar toda a papelada que comprovava a violência doméstica na bolsa de mão. Ela foi levada até uma juíza de instrução (uma mistura entre nosso juiz e delegado). Essa juíza de instrução é quem efetuaria a prisão de Valéria, mas antes a juíza conversou com ela, comprovou a autenticidade da documentação e acabou revogando a prisão.
Apesar de entender que não era caso para prisão, a juíza decidiu não deixar Valéria sozinha com a filha enquanto investigava todo o caso. Ela estava então sob uma restrição determinada pela juíza: não poderia ficar sozinha com a filha, não poderia sair da França e teve de entregar passaporte e documentos. Essa restrição durou três meses.
Como não há chances de ganhar um processo de guarda francês respondendo a um processo penal, a psicóloga acredita que essa tenha sido a motivação do pai de sua filha para acusá-la criminalmente de sequestro, “Ele já tinha feito tudo de caso pensado, para que quando eu chegasse aqui o processo penal fosse um impeditivo”.
A vara de família francesa decidiu dar a guarda da criança ao pai, alegando que Valéria não tinha moradia fixa no país, não tinha emprego e respondia a processo penal. “Ao mesmo tempo eles sabiam que eu não era um risco ou uma ameaça à minha filha, então determinaram esse modo de direito de visita”, pois terminada a restrição ela pode ficar com a filha nas quartas à tarde e durante finais de semanas alternados.
Fundo do poço
A psicóloga está há quase um ano vivendo na França, mas não tem condições financeiras para se manter no país por mais tempo. Para conseguir alugar a quitinete ela teve que pagar seis meses de aluguel adiantado, que agora não tem como renovar. Da vida financeira estável no Brasil, trabalhando como professora universitária e psicóloga, ela agora cuida de crianças e animais de estimação para se manter.
As condições de vida da filha atualmente são bem diferentes das que Valéria oferecia no Brasil. A criança e o pai moram em um apartamento de quarto e sala, “nem um quartinho para ela tem”, lamenta Valéria. Segundo ela, a filha passa o dia todo na escola. Além da condição de vida das duas ser muito diferente a que tinham acesso no Brasil, Valéria ressalta o fato de a filha nunca ter ficado sem ela, que sempre foi a responsável por cuidar da criança em todos os sentidos.
“Para mim é muito difícil entender que isso é o certo, que é isso que acontece quando você ousa dizer não para uma relação abusiva”, diz ela. Entre alguns momentos de silêncio ela afirma que apesar de ele não ter sido diretamente violento com a criança, ele é negligente, “Ela está com os dentes cariados, ele não leva ao dentista”, diz Valéria, tentando controlar o choro.
Medo de perder a filha
O medo de Valeria em voltar para o Brasil é deixar a filha com o pai e não conseguir nenhum tipo de regulamentação de visita para que possa, pelo menos, vê-la durante as férias. A garantia não existe nem para que a criança venha para o Brasil nas férias ou para que Valeria vá para a França visitá-la.
Ela entrou com pedido de regulamentação de visitas considerando que o retorno para o Brasil é inevitável. Ele apelou para um recurso que ainda não tem data marcada, segundo ela, para dificultar que essa regulamentação seja feita. “Ele faz de tudo para que eu não consiga vê-la”, diz a mãe num misto de indignação e desespero.
Valéria afirma que o fato de viver sem garantias da segurança de seus direitos foi o que a fez vir para o Brasil com a filha, em primeiro lugar. E que foi essa insegurança na qual vivia que motivou a juíza a optar pela determinação de uma salvaguarda antes do retorno para França.
O processo na França está parado aguardando um recurso que não tem nem data para sair. No Brasil o recurso também está parado. “Tinham toda aquela pressa para devolver de qualquer jeito a criança para a França, passaram por cima de tudo que podia tornar esse retorno seguro e agora está tudo parado”, diz Valéria.
“Eu saí de uma situação absurda e me jogaram aqui de novo. Eu perdi tudo, tudo. Inclusive a minha filha”
O acordo que ela propõe é que a filha viva no Brasil, mas que possa passar todas as férias com o pai na França ou que o pai possa vir ao Brasil ficar com a filha. Que eles conversem por Skype toda noite antes de ela ir dormir. Ele não precisaria pagar pensão, pois Valéria diz que conseguiria manter a filha sozinha e ele poderia usar o dinheiro que ganha para poder viajar e vê-la.
“Eu entendo que ele possa pensar que se ela sair da França pode não voltar mais, ainda que isso não vá acontecer, eu poderia entender esse argumento. Agora, que eu venha passar as minhas férias com ela aqui eu não entendo porque dizer não para isso?”, questiona a psicóloga.
Ela se sente punida por ter saído de um relacionamento violento. “Eu saí de uma situação absurda e me jogaram aqui de novo. Eu perdi tudo, tudo. Inclusive a minha filha”, diz.
Senado
A discussão sobre a disputa da guarda chegou ao Senado nacional, foi tema do pronunciamento do senador Alvaro Dias no dia 11 de setembro deste ano. “A postura da AGU deveria ser a proteção e salvaguarda da menor de nacionalidade brasileira”, afirmou Dias ao citar o fato de a AGU ter determinado o retorno da criança para a França.
O senador falou sobre a complexidade jurídica do caso e contou toda situação que Valéria está enfrentando. “O bem-estar da criança deveria ser o bem maior a ser preservado, e seguramente isso não ocorreu”, disse Alvaro Dias.
Ele ainda ressaltou os “efeitos irreversíveis e de difícil reparação” causados pelo retorno e pela posterior separação de mãe e filha em solo francês. Com o pronunciamento o senador espera ter uma resposta das autoridades jurídicas responsáveis pelo caso.
Um misto de esperança e impotência pode ser sentido enquanto Valéria conta sua história, entre momentos de silêncio e o choro incontido existe a incerteza do próximo passo, que segundo ela não existe. Com a volta para o Brasil se aproximando ela diz que vai ficar até o último dia em que seu aluguel estiver valendo, até o último dia em que tenha onde morar para poder visitar a filha. Já que não sabe quando vai poder vê-la outra vez.
Outro lado
Em nota enviada à imprensa brasileira, a defesa do pai de N* diz que ele jamais cometeu agressão e que a guarda da menina é compartilhada. Também afirma que ele jamais descumpriu o que foi acordado entre eles, inclusive pagando a pensão da menina.
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