A história de Alecia beira o inacreditável. Se tivesse sido inventada por um romancista alguém ia dizer que era inverossímil. Mas como ensinou Pirandello, a realidade pode ser bem mais inverossímil do que a ficção. Nesse caso, por exemplo, o mundo real produziu uma pessoa incapaz de comprovar a própria existência.
O parto de Alecia Faith Pennington foi na casa da família, no Texas. Os pais jamais registraram a menina, que cresceu basicamente confinada numa fazenda – nunca foi sequer ao médico e ao dentista. A educação também era feita em casa. Ou seja: nem para a escola ela ia. Os pais também não deixavam que ela fizesse praticamente nada, quanto menos namorar. Até que aos 19 anos ela decidiu dar um basta e sair de casa.
Foi quando chegou ao mundo real que Alecia descobriu sua inexistência. Aos olhos do Estado ela simplesmente nunca tinha nascido. Ela queria tirar carteira de motorista, viajar, continuar os estudos. Mas não podia fazer nada disso porque não tinha qualquer documento. E até para conseguir uma certidão de nascimento ela precisava provar que existia – que em algum momento seu nome ficou marcado numa ficha de um médico, algo assim. Mas ela não tinha nada.
A burocracia americana não tinha como saber se ela não era uma fugitiva querendo trocar de nome. Ou uma imigrante querendo se passar por nativa. E simplesmente se negava a dar um documento para alguém que, aparentemente, tinha surgido do nada.
A situação dela chamou a atenção quando Alecia, desesperada, foi ao YouTube. Gravou um vídeo de um minuto e meio contando a sua história e que hoje já foi visto por 1,4 milhão de pessoas. Muita gente quis ajudar, embora ninguém soubesse exatamente como. Até que se encontrou uma brecha legal e ela conseguiu, enfim, ser cidadã.
Mas por incrível que possa parecer, houve gente que condenou Alecia por tentar conseguir seus documentos. Eis o quão inverossímeis podem ser os fanáticos ideológicos. Segundo alguns radicais, o que a menina do Texas estava fazendo era abrir mão de uma dádiva que seus pais haviam legado a ela – a dádiva de não poder ser controlada por um Estado, de ser soberana.
Um programa de rádio americano entrevistou Alfred Adask, um dos que tentaram convencer a garota a permanecer como estava. “Ela quer ser súdita. Ela não quer ser livre. É uma escolha dela”, disse ele, afirmando que se ela quisesse ela podia ser escrava. “Existem consequências em abandonar esse estado de liberdade que ela tem.”
Veja o vídeo de Alecia pedindo ajuda
Esse é o dogma dos libertários levado ao extremo. Aquele em que o ideal seria que o governo não tivesse peso nenhum sobre as nossas vidas – aquele que vê qualquer tipo de Estado como um fardo, como a possibilidade de alguém querer se intrometer nas nossas vidas. Um tipo de pensamento que, aos poucos, vem ganhando grande importância nos Estados Unidos e que, pelas beiradinhas, também tem conquistado alguns adeptos no Brasil.
Os libertários veem comunistas e totalitários embaixo da cama. Têm toda razão em desconfiar do Estado depois do que o século 20 nos aprontou. Mas quando você começa a ver que chegamos a um ponto em que se prega que o ideal seria simplesmente não haver qualquer organização social estabelecida – uma espécie de anarquia, no fim das contas – talvez seja a hora de lembrar um dos princípios mais antigos e importantes da filosofia. A virtude está no meio.
PS: O Radiolab, um dos melhores podcasts possíveis, fez um programa de meia hora sobre a história de Alecia. Foi de lá que veio a entrevista com Adask. Vale ouvir o programa (em inglês) e seguir acompanhando o podcast.
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