O mundo do Direito parece sempre dividido entre dar mais garantias ao investigado ou fazer com que o processo seja mais rápido, menos enrolado. No Brasil parece que a balança pendeu recentemente para o lado da prisão antecipada, do uso de prisões preventivas e provisórias para acabar com a impunidade. Isso traz riscos? Quais?
Na verdade, acho que o mundo sente essa divisão mais em alguns momentos históricos específicos do que em outros. Hoje em dia essa dicotomia é muito presente e central. Mas no início de nossa modernidade jurídica havia muitos que jamais colocariam em dúvida a centralidade de valores como direito de ir e vir, presunção de inocência ou ampla defesa.
Marquês de Beccaria, num livro de 1764, já defendia isso. Ao contrário disso, Carl Schmitt, jurista alemão famoso, sustentava nos anos 1920 e 1930 que direitos individuais poderiam ser submetidos (ou até anulados) diante de casos de necessidades mais amplas, a serem interpretadas pelo soberano.
No Brasil, o famoso jurista Francisco Campos – criador da Constituição de 1937 – tinha, ao menos na época do Estado Novo, intuições parecidas. Ou seja: melhor avaliar as circunstâncias e contextos históricos para entender essa oscilação de interpretações.
A UFPR emitiu uma nota pedindo que se use o momento em que houve uma tragédia para que se repense a forma como investigações e prisões tem sido conduzidas. Até onde esse tipo de conduta das autoridades tem a ver com a Lava Jato e com o momento político do país?
Não posso especular sobre as relações existentes entre a chamada Operação Lava Jato e o trágico episódio do suicídio do reitor da UFSC ocorrido ontem, que motivou a nota que fizemos. Seria algo especulativo e até irresponsável. Também desconheço os fatos concretos que envolvem a operação policial na qual ele foi preso, e por isso não posso fazer aqui um juízo definitivo de inocência ou culpa. Até porque, creio, ninguém pode, já que o processo, se é que processo havia, sequer tinha recebido ainda a defesa dele e muito menos teve decisão definitiva.
Mas acho, independentemente disso, que essa tragédia deve dar sim o que pensar. Note que ele foi indiciado numa operação chamada “ouvidos moucos” por, pelo que se disse, ter ignorado solicitações dos chamados órgão de controle da administração (CGU e TCU). Isso dá um sinal estranho aos gestores públicos em geral: parece que desobedecer esses órgãos de controle (que não se confundem com polícia nem com judiciário) podem resultar em cadeia. Isso tudo parece estar em linha com a atual demonização do exercício das funções públicas.
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De outro lado, ele era dito como suspeito de ter “obstruído as investigações” de desvios que teriam ocorrido em período anterior à gestão dele. Portanto, a questão nem era, pelo que ouvi, dele ter sido o autor de desvio de dinheiro público, mas de dificultar o processo de investigação. Por conta disso, foi decretada a prisão dele – que era autoridade máxima de uma das maiores universidades brasileiras e que foi eleito pela maioria de sua comunidade, jogando aquela instituição numa crise sem precedentes. Essa medida extrema – a supressão de sua liberdade – seria necessária num caso desses? O inquérito ou o processo não poderiam seguir sem esse constrangimento máximo?
Além da trágica dimensão humana e familiar, deve dar o que pensar sobre o que foi feito do princípio constitucional da autonomia universitária, que nesse caso foi reduzida a pó
Mais estranho ainda: ele é libertado no dia seguinte, por decisão da própria vara criminal que havia determinado a sua prisão no dia anterior. Posso estar enganado, mas ficou uma impressão que a prisão, que durou 24 horas, só serviu para alimentar um certo moralismo administrativo, um sadismo punitivista ou a sede inesgotável da mídia por escândalos.
De fato, repentinamente seu nome povoou as manchetes nacionais e principalmente de seu estado, envolvido que foi num grande escândalo. Mesmo libertado, a decisão judicial o impedia de colocar os pés na sua Universidade. O desfecho foi esse: atirou-se para a morte, menos de vinte dias depois de sua prisão, no saguão de um shopping center de Florianópolis.
Pois então não tenho dúvidas que esse caso deve dar o que pensar. Além da trágica dimensão humana e familiar, deve dar o que pensar sobre o que foi feito do princípio constitucional da autonomia universitária, que nesse caso foi reduzida a pó.
Mas sobretudo traz dúvidas para quem acreditava que vivíamos numa democracia em que estava vigente uma cultura de direitos – todos previstos em nossa Constituição – tais como presunção de inocência, ampla defesa e princípio da dignidade da pessoa humana.
As universidades federais estão mais do que nunca na mira da sociedade, dos jornais, da população, até por terem um alto custo. Como lidar com isso?
Temos que matizar essa questão. Creio que as universidades públicas estão, sim, na mira de boa parte da opinião publicada: jornais e revistas têm sido particularmente insistentes em demonizar as universidades públicas, e acho que as razões disso tinham que ser questionadas.
E não que as universidades sejam intocáveis ou perfeitas, como qualquer instituição não é. Mas ainda assim poucas vezes se viu uma campanha tão feroz para deslegitimar essa instância que, afinal, ainda é a maior responsável pela produção de saberes, de ciência e de tecnologia no Brasil e por isso é um dos patrimônios mais valiosos que temos. Precisamos demonstrar mais e melhor nossa imprescindibilidade ao futuro do país.
Nada justifica eventuais desperdícios ou descaminhos de recursos públicos, que devem ser apurados e corrigidos, mas algumas instituições, como as Universidades, parecem-me inestimáveis.
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