Poucas óperas são tão populares como a “Carmen” de Georges Bizet, mas sua conturbada estreia, ocorrida em março de 1875, nos força a refletir sobre a força vigente na época, e nos dias de hoje, da moral burguesa, recheada sobretudo por uma forte hipocrisia. Um pouco da história da gênese desta obra prima será muito útil para entendermos o que se passou na noite de 3 de março de 1875 na “Opéra-Comique”, em Paris.
De Mérimée a Bizet
Georges Bizet tinha 36 anos quando escreveu a música de Carmen, não tendo até então composto nada realmente marcante. Muitos anos antes teve contato com a curta novela “Carmen” de Prosper Mérimée, e imaginava que a história narrada nela seria um bom assunto para uma ópera. Como a novela é bem sombria, pois é uma narrativa feita na prisão por Don José horas antes de ser enforcado pelo assassinato da cigana Carmen, Bizet e os diretores da “Opéra-Comique” pediram a ajuda de dois experientes libretistas para tornar o enredo mais palatável para a plateia do teatro: Henri Meilhac e Ludovic Halévy. Estes então inventaram uma personagem, uma espécie de tábua de salvação entre tantos personagens moralmente reprováveis: Micaela, a jovem noiva pura e virgem de Don José. Também transformaram um dos amantes de Carmen, o grosseiro “picador” de mulas Lucas, num vistoso e cheio de “sex appeal” toureiro, Escamillo, e deram uma melhorada no caráter de Don José, que aparece na novela como autor de outros assassinatos. Uma coisa porem os libretistas não tinham como mudar: o caráter libertário e sensual da personagem principal. E foi aí que a coisa ficou feia para o público que assistiu a ópera pela primeira vez.
Uma estreia que chocou a “família parisiense”
Na estreia de Carmen estavam presentes importantes personalidades do meio musical parisiense: Gounod, Delibes, Massenet, Thomas e notáveis de outras áreas como o escritor Alexandre Dumas. No delicioso livro de memórias de Ludovic Halévy podemos acompanhar passo a passo o desenrolar dos fatos na noite de estreia de uma das mais conhecidas óperas de todos os tempos: “Sucesso do primeiro ato. O público aplaudiu a entrada de Carmen (Habanera), e aplaudiu bastante o dueto de Don José e Micaela. Bom fim de ato…aplausos…chamadas à cena para agradecimentos, muita gente atrás das cortinas para cumprimentar o compositor” Segue a narrativa: “O segundo ato foi menos satisfatório. Começo do ato bem brilhante e muito sucesso na ária do Toreador. Depois disso reação cada vez mais fria…Bizet, a partir daí se afasta dos padrões. O público surpreso, descontente. Poucas pessoas em torno do autor no final deste ato. A frieza se acentuou no terceiro ato. Apenas a ária de Micaela foi aplaudida (sendo que o compositor Charles Gounod, que estava presente, acusou Bizet de ter copiado esta ária de uma que ele já tinha escrito). Pouca gente ainda para cumprimentar o compositor. E depois do quarto ato, que foi recebido de forma “glacial”, da primeira à última nota, “três ou quatro amigos em torno do compositor”. As críticas foram terríveis sendo que um certo Oscar Commetant afirmou: “O estado patológico desta infeliz é, felizmente, um caso raro, mais propício para inspirar cuidados médicos do que para interessar os honestos espectadores vindos ao teatro acompanhados de suas esposas e por suas filhas”. Um outro crítico, Fraçois Oswald, comentou, sobre a atuação de Célestine Galli-Marié, a primeira intérprete de Carmen: “Ela parece ter prazer de acentuar o lado escabroso deste papel tão cheio de riscos. Para aqueles que adoram vulgaridades esta estreia foi um prato cheio”. As consequências de tamanho escândalo são inúmeras, entre elas a morte prematura do talentoso compositor, alguns meses depois, e a ausência por oito anos da mais popular ópera francesa de todos os tempos em seu país de origem.
Logo depois desta mal sucedida estreia a ópera de Viena se interessou pela partitura. Ela foi estreada na capital austríaca em outubro do mesmo ano com enorme sucesso, elogiada por pessoas tão diferentes quanto Brahms, Wagner e pelo filósofo Nietsche, um grande admirador da partitura. Esta estreia vienense, em alemão, foi tão bem sucedida que logo foi encenada em Bruxelas (de novo com a “escabrosa” Célestine Galli-Marié ), Nova York, Berlim e muitas outras cidades, mas teve que esperar até 1883 para ser de novo apresentada, com sucesso, em Paris. Vale a pena lembrar que o sisudo compositor Johannes Brahms assistiu mais de 20 vezes a ópera, e que o compositor russo Tchaikovsky a tocou por prazer ao piano diversas vezes, narrando a alegria de encontrar tantas novidades musicais em diversas cartas. Pena que o compositor da ópera, Georges Bizet, não pode assistir todo este êxito. Ele faleceu três meses depois do fracasso de sua obra.
Georges Bizet: um gênio
A música de Carmen tem um frescor em termos de melodia e harmonia que a colocam entre as grandes obras musicais do século XIX. Seu tecido harmônico chamou até a atenção do compositor Arnold Schoenberg, que cita alguns trechos da ópera em seu livro “Funções estruturais da harmonia”. Bizet já tinha demonstrado o seu incrível talento desde sua Sinfonia em Dó maior, escrita aos 17 anos até sua ópera “Os pescadores de pérolas”. Mas Carmen supera, de longe, qualquer expectativa. Carmen era a princípio uma “Opéra-Comique”, isto é, uma ópera recheada com diálogos falados. Vale ressaltar que o teatro da “Opéra-Comique” era uma espécie de teatro de ópera alternativo, menor e mais intimista do que a grandiosa “Opéra” de Paris. Quando Carmen é levada para a ópera de Viena estes diálogos falados tinham que ser substituídos por recitativos. Quem os compôs foi o aluno de Bizet Ernest Guiraud que também arranjou alguns trechos de L’arlesiene, outra composição de Bizet, para um ballet no último ato. Vale a pena ressaltar que na estreia vienense alguns diálogos foram mantidos, e esta mistura é mantida até hoje naquele teatro. Muita gente passou a acreditar que aqueles medíocres recitativos eram da autoria de Bizet, e só na década de 70 do século passado é que a versão original foi restaurada através da excelente edição do musicólogo Fritz Oeser. Aos poucos esta versão original tomou conta de todos os teatros do mundo, sendo que aqui no Brasil foi apresentada pela primeira vez em 1992, numa versão regida por mim, e encenada pelo grande ator Sergio Brito, no Teatro Guaíra em Curitiba. A versão original coloca a nu a péssima pronúncia da língua francesa dos cantores, e é por isso que alguns teatros estão voltando a usar os recitativos de Guiraud, o que acho lamentável.
Carmen em Pequim
Carmen será adaptada para o cinema numa versão “negra” da ópera, “Carmen Jones” dirigida por Otto Preminger, e será objeto de um magnífico espetáculo teatral dirigido por Peter Brook: “A tragédia de Carmen”, além do “indigesto” filme de Godard “Prénom Carmen”, de 1983. Mas para concluir é bem interessante sabermos algo que aconteceu também em 1983. Naquele ano seria montada pela primeira vez a obra prima de Bizet em Pequim, com cantores chineses, e com um maestro e um encenador franceses. Era o início de uma abertura para o ocidente do fechado partido comunista chinês. No último momento o referido partido, tendo tomando conhecimento do enredo, diminuiu o número de récitas, e só foram admitidos no teatro estrangeiros e alguns convidados especiais. Certamente estavam preocupados com os “honestos espectadores vindos ao teatro acompanhados de suas esposas e por suas filhas”.
A Carmen de Bizet em Curitiba, nos anos 1992 e 1993: lembranças pessoais
A montagem que citei acima da obra prima de Bizet realizada pelo Teatro Guaíra em 1992 e 1993 foi uma das melhores experiencias musicais que tive em toda a minha vida. Lembro das longas conversas com Sergio Brito, o genial encenador da produção com o qual aprendi que Don José é o único personagem da ópera que se transforma, do início ao fim do texto. Todos os outros permanecem sempre os mesmos. Lembro também do excelente Coro Teatro Guaíra, preparado por Emanuel Martinez, que era de uma qualidade somente comparada aos coros dos Teatros Municipais de São Paulo e Rio de Janeiro e que contava em seus quadros cantoras do nível de Simone Foltram e Ana Paula Brunkow. Cantores que deixaram uma marca indelével em minha memória como Ruth Staerke e Adelia Issa cantando Micaela e os magníficos tenores Benito Maresca e Eduardo Àlvares, intérpretes ideais de Don José. No papel título jamais esquecerei o empenho dramático e vocal de Regina Elena Mesquita e Celine Imbert. Foi também a única vez que trabalhei junto com o fantástico barítono Rio Novelo. Foi reservada uma verba para alugarmos as partituras pela edição Baerenreiter, o que garantiu a estreia brasileira da versão original. Cantores aqui de Curitiba que demonstraram um nível altíssimo como Denise Sartori (Carmen), Pepes do Vale (Zuninga), Fátima Castilho (Mercedes), Ivan Moraes (Remendado) e Divonei Scorzato (Morales) demonstraram o que é possível realizar quando se tem oportunidade de se fazer um trabalho sério. Lembro também que a Orquestra Sinfônica do Paraná nunca soou tão bem, e é triste que um espetáculo deste nível seja algo completamente impensável em Curitiba nos dias de hoje.
Vídeo
A belíssima versão apresentada em Viena em 1976 numa edição fiel (mistura de diálogos e recitativos e mais o Ballet do IV ato) ao que tinha sido apresentado naquele teatro em 1875 com Elena Obratsova e Placido Domingo. Regência impecável de Carlos Kleiber
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