Você ainda verá muita gente afirmando que, com a reforma da Previdência, a maioria dos brasileiros vai trabalhar até a morte ou morrerá pouco depois de se aposentar. E que as principais vítimas serão os mais pobres. Tudo porque o governo quer exigir idade mínima de 62 anos para mulheres e 65 para homens – e em muitas regiões brasileiras, justamente as menos desenvolvidas, a expectativa de vida não vai muito além dessas idades.
Não tenha dúvida: o governo quer mesmo que você trabalhe mais, contribua mais e se aposente mais tarde e recebendo menos. Se não fosse esse o objetivo, Jair Bolsonaro não estaria propondo reforma alguma. Nem Michel Temer o teria feito, nem Lula, nem FHC. Até Dilma Rousseff tinha um projeto, com idade mínima e tudo, mas o impeachment veio antes.
No entanto, não é porque o governo quer dificultar a aposentadoria que devemos levar a sério discursos como o do primeiro parágrafo. Que é enganoso, por pelo menos três razões:
1) Expectativa de vida do recém-nascido não deve ser referência para aposentadoria
Quem afirma que as pessoas vão trabalhar até morrer usa como referência a chamada “expectativa de vida ao nascer”. Que, para os homens, não chega a 70 anos em dez estados das regiões Norte e Nordeste. Nos dois piores da lista, Piauí e Maranhão, ela é de apenas 67,1 anos, segundo dados do IBGE referentes a 2017.
Ocorre que a expectativa de vida ao nascer, como diz o próprio nome, busca estimar a longevidade dos recém-nascidos. E por isso embute todos os riscos que uma pessoa enfrentará ao longo da vida. No caso brasileiro, esse indicador é puxado para baixo pela elevada mortalidade infantil e pelo grande número de jovens vitimados pela violência e o trânsito. Uma vez superadas essas fases mais críticas, a expectativa de vida aumenta significativamente, mesmo nos estados mais pobres e violentos.
Portanto, não faz sentido usar, no debate da Previdência, um indicador que é muito influenciado pelas mortes de bebês, crianças, adolescentes e jovens adultos, que, por óbvio, não conseguiriam se aposentar nem pelas regras atuais nem pelas propostas pelo governo.
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Para projetar por quanto tempo alguém vai desfrutar da aposentadoria, o correto é observar qual a expectativa de vida a partir do momento em que a pessoa se aposenta.
No Piauí e no Maranhão, os mesmos estados citados acima, os homens que completam 55 anos têm expectativa de chegar aos 76,2 e 76,6 anos, respectivamente, segundo o IBGE. Para os que alcançam os 65 anos de idade, a expectativa nesses dois estados vai a 79,6 e 80,2 anos.
Assim, os piauienses e maranhenses que hoje se aposentam aos 55 anos tendem a desfrutar do benefício por mais de 21 anos, em média. Se tiverem de esperar até os 65, como quer o governo, vão aproveitá-lo por 15 anos, aproximadamente.
Quer dizer: com a reforma, eles certamente vão passar menos tempo aposentados; mas não serão em média só dois anos de aposentadoria, como poderia supor quem se baseia na expectativa de vida ao nascer.
2) As pessoas já se aposentam mais tarde nos estados mais pobres
Uma das críticas às idades mínimas propostas na reforma da Previdência, derivada da discussão do tópico anterior, é que ela ignora as diferenças regionais, o abismo que separa as condições de vida entre os estados mais ricos e os mais pobres.
Essa “maldade”, no entanto, não foi inventada pela reforma. As regras atuais de aposentadoria já desconsideram as diferenças regionais. Ninguém se aposenta antes por morar no Norte ou Nordeste. Na prática, acontece exatamente o oposto: é nos estados mais pobres que as pessoas se aposentam mais tarde. Por um motivo simples: nos lugares menos desenvolvidos, onde há mais pobreza, menos instrução e mais informalidade no mercado de trabalho, é mais difícil recolher ao INSS pelo tempo mínimo exigido na aposentadoria por tempo de contribuição. Assim, boa parte dos trabalhadores só consegue se aposentar mais tarde, por idade.
Em Santa Catarina, os trabalhadores urbanos se aposentam em média aos 56,4 anos. No Rio Grande do Sul, aos 56,8. Enquanto isso, a idade média de aposentadoria é de 61,5 anos no Maranhão, 62,3 no Amapá e 62,6 no Tocantins. Os dados, referentes a 2014, foram levantados pelos pesquisadores Rogério Nagamine Costanzi e Graziela Ansiliero.
Vale notar também que, embora as expectativas de vida sejam sempre menores nos estados mais pobres, as diferenças regionais, que são gritantes quando se observa a expectativa de vida ao nascer, diminuem nas faixas etárias mais elevadas. Isto é, entre as pessoas que estão perto de se aposentar.
Na expectativa de vida ao nascer dos homens, a diferença entre o pior e o melhor número do país é de nove anos: em um extremo, ela é de 67,1 anos no Piauí e no Maranhão; no outro, de 76,1 anos em Santa Catarina. Para os homens que completam 55 anos, a distância entre a menor e a maior expectativa diminui para 4,7 anos (76,2 anos no Piauí e 80,8 anos no Espírito Santo). Aos 65 anos, a diferença cai a 3,7 anos: a expectativa dos homens piauienses que completam essa idade é de chegar aos 79,6 anos; no Espírito Santo, o melhor indicador do país, é de 83,3 anos.
(Este texto usa o exemplo dos trabalhadores do sexo masculino porque eles estão nos extremos: na média, se aposentam mais tarde e vivem menos que as mulheres. Mas a dinâmica para elas é semelhante: a expectativa de vida é menor ao nascer e aumenta bastante com o passar do tempo; e as diferenças regionais são grandes na infância e menores na maturidade. Para mais detalhes, o gráfico que está no fim deste texto, preparado pelo infografista Guilherme Storck, da Gazeta do Povo, permite comparar as expectativas de vida de homens e mulheres – ao nascer, ao completar 55 anos e aos 65 – em todos os estados e regiões do país. As projeções são do IBGE e o ano de referência é 2017.)
Há outra questão relevante: a criação de uma regra para compensar as diferenças regionais – que chegou a ser defendida pelo próprio presidente Jair Bolsonaro no início do ano – poderia, por si só, aumentar as distorções que já existem na Previdência. Para não falar na complexidade dessa tarefa.
Como conciliar tal compensação com as normas que já diferenciam homens e mulheres, trabalhadores urbanos e rurais, civis e militares, para não falar dos professores e de quem trabalha em atividades de risco?
Que idade mínima deveria ser exigida de uma profissional que nasceu no Sul, passou boa parte da carreira no Sudeste e pediu aposentadoria no Nordeste? Maior ou menor que a de um homem que fez o percurso contrário? Alguém que trabalhou a vida toda num escritório no Recife deve se aposentar antes ou depois de um pedreiro catarinense ou de um lavrador mineiro?
3) Os homens mais pobres já se aposentam aos 65 anos. E as mulheres, aos 60
O incômodo de trabalhadores de classe média e alta contra as idades mínimas propostas pelo governo é compreensível. Mais escolarizados, eles passam mais tempo no mercado formal e com isso conseguem se aposentar após 30 (mulheres) ou 35 anos (homens) de contribuição, sem precisar atingir uma idade mínima. Com isso, começam a receber aposentadoria em média aos 52 anos de idade, no caso das mulheres, ou 55, no caso dos homens. Se a reforma da Previdência for aprovada, essas pessoas vão se aposentar uns dez anos mais tarde.
Os trabalhadores mais pobres, no entanto, raramente conseguem parar de trabalhar antes dos 60 anos. Para eles, a aposentadoria já vem mais tarde, em idades muito próximas às propostas pelo governo.
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Isso ocorre porque quem fica muito tempo no desemprego ou na informalidade não consegue contribuir ao INSS por 30 ou 35 anos. A alternativa é se aposentar por idade, regime que exige apenas 15 anos de contribuição. Nessa modalidade, os homens que trabalham na cidade podem se aposentar a partir dos 65 anos – exatamente a idade mínima que o governo pretende exigir após a reforma.
Para as mulheres que trabalham em áreas urbanas, a aposentadoria por idade só é permitida, pelas regras atuais, a partir dos 60 anos. Se a reforma passar, a idade mínima exigida delas será dois anos mais alta.
Pode-se discutir se é justo cobrar 62 ou 65 anos de idade para a aposentadoria de quem depende de vigor físico para exercer sua profissão. A questão é que muitos críticos da reforma desconhecem ou omitem que pelas regras atuais muitos brasileiros já se aposentam mais ou menos nessas idades.
Na soma dos aposentados por idade e tempo de contribuição, 21% dos homens conseguiram o benefício apenas aos 65 anos de idade ou depois. E 41% das mulheres, com 60 anos de idade ou mais.
O que realmente vai dificultar a aposentadoria dos mais pobres não é a idade mínima, e sim o aumento do tempo de contribuição proposto pelo governo, para 20 anos. É um ponto que merece discussão cuidadosa no Congresso. Em sua proposta, que nunca chegou a ser votada em Plenário, o governo Temer pedia inicialmente 25 anos de contribuição, mas o requisito caiu ao longo da tramitação na Câmara.
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