O anúncio de que um cientista chinês, He Jiankui, editou os genes de bebês e criou os primeiros seres humanos geneticamente modificados confirmou a preocupação de que, se uma tecnologia permite que algo seja feito, provavelmente isso será feito. Essa técnica pode ser benéfica para prevenir doenças genéticas. Mas, ao mesmo tempo, levanta o temor de que a ciência crie “monstros” ou uma nova espécie de “super-homens”, que poderiam vir a subjugar os humanos comuns. No limite, é uma discussão se mudanças nos corpos podem afetar a essência humana. Com profundas implicações éticas e sociopolíticas.
O corpo costumava ser o “primo pobre” na história do pensamento. Poucos pensadores refletiram sobre ele mais profundamente. Na tradição dominante no Ocidente, é visto como inferior à mente/alma – que seria a sede da identidade humana. Porém, diante da “ameaça” da revolução da genética, o debate do corpo – perdoem o trocadilho – ganha corpo.
O filósofo grego Platão foi quem inaugurou a tradição ocidental de supervalorização da mente, cerca de 400 anos antes de Cristo. Para ele, o corpo, com seus sentidos sujeitos ao equívoco, é uma barreira para o intelecto chegar à verdade do mundo das ideias – que só seria acessível pela mente. Não era apenas uma teoria de como se pode conhecer algo. Tinha desdobramentos políticos: o Estado ideal de Platão era uma cópia do ser humano; havia de ser comandado pelos sábios (a cabeça/mente da sociedade), a quem os demais (o corpo) teriam de se submeter.
A alma superior à carne também é a base do pensamento cristão, hegemônico na Idade Média: a verdadeira vida não está no mundo terreno, mas no reino dos céus.
A modernidade não alterou o status do corpo. O francês René Descartes (1596-1650), assim como Platão, desconfiava dos sentidos humanos como instrumento para se conhecer a realidade. Então ele fez um experimento mental. Se alguém fosse suspenso no ar numa sala escura, com silêncio total e sem contato físico com qualquer coisa, só poderia ter uma única certeza: de que pensa. A razão, portanto, seria a base de qualquer conhecimento verdadeiro e seguro. O corpo passou a ser visto como a máquina comandada pela mente – uma extensão dela, sem vontade própria. O homem é, em essência, um ser que raciocina. “Penso, logo existo”, resumiria Descartes.
A racionalidade cartesiana impulsionou a ciência moderna. Ajudou a criar as bases filosóficas para a democracia contemporânea: se todos os homens são igualmente racionais, podem decidir seus próprios destinos. Mas também relegou o trabalho braçal a uma posição de inferioridade em relação ao labor intelectual.
A tradição hegemônica do pensamento ocidental poderia fazer supor que, se o corpo não é a morada da essência humana, não haveria risco em modificá-lo por manipulação genética. Mas o problema é que o platonismo e o cartesianismo, embora tenham decretado a superioridade mental, admitem que o corpo pode influenciar a alma/mente – o que sugere que mudanças na essência dele podem mudar a essência humana.
Platão reconhece que são os sentidos que “acordam” a mente para a experiência do mundo e para a possibilidade de se conhecer a verdade. Descartes atesta que o corpo, embora inferior, está unido à mente e se comunica com o pensamento por meio das paixões. A enfermidade ou o prazer do corpo afetam a alma. Não é, portanto, o pensamento que age sobre a matéria; mas o contrário.
A manipulação genética humana torna-se uma questão ainda mais crucial à luz de uma visão antagônica ao pensamento tradicional, que vem ganhando força. O filósofo britânico Gilbert Ryle (1900-1976) combateu o que considerava ser o mito cartesiano do “fantasma na máquina”. Em resumo, ele dizia que a ideia de uma mente separada do corpo é um erro. Essa corrente de pensamento vê a mente e os processos mentais como uma função do corpo – tal como a digestão, por exemplo. A consequência disso é que a identidade humana seria corporal. Alterá-la seria mudar a essência do homem.
O debate tem ainda implicações sociopolíticas e éticas profundas. A democracia resistirá sem uma definição de essência humana que fundamente a ideia de igualdade natural e política? A tecnologia de aprimoramento genético estará disponível a todos? Ou apenas alguns, que tenham dinheiro suficiente, poderão pagar para se transformar em “super-humanos”? O que os impedirá estes de submeter os demais a suas vontades? E o que será feito se algo falhar e forem criados “monstros”?
O alemão Hans Jonas (1903-1993) formulou uma resposta possível. Segundo ele, qualquer relação da humanidade com a natureza (o que pode incluir a natureza humana) tem de ser regida pelo princípio da responsabilidade: “Atuar de forma que os efeitos de suas ações sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana genuína”. Ou seja, nada deve ser feito se existe algum risco à continuidade da existência do homem como homem. Obviamente, trata-se de um princípio ético que, para ter força, precisaria ser instituído por meio de leis.
Há, contudo, quem acredite que legislação e ética não impedirão a modificação genética dos corpos. E que tampouco é desejável impedir que isso ocorra porque estaria sendo bloqueado um caminho para a realização humana. Para embasar seus argumentos, o grupo dos defensores da livre construção de corpos foi beber no pensamento dos estoicos (antiga escola helenística), do holandês Baruch Spinoza (1632-1677) e do francês Gilles Deleuze (1925-1995).
Os estoicos argumentavam que todos os seres (inclusive humanos) são absolutamente individuais, nunca universais. Para eles, a única universalidade é o devir, a eterna mudança das coisas. Não haveria, portanto, uma essência humana fixa.
Já Spinoza afirmava que tudo é Deus; a natureza é Deus. E que os seres, portanto, são uma forma de expressão divina. A filosofia spinoziana coloca a expressão no lugar da essência como ponto central de preocupação. Impedir o homem de se expressar seria o verdadeiro comportamento antiético, pois isso cria restrições indevidas à liberdade humana de buscar todo seu potencial.
Por fim, Deleuze se inspira nos estoicos e em Spinoza para defender as mudanças corporais. Sua argumentação é de que a tecnologia permite ao homem ter um “corpo virtual”, potencialmente liberto das amarras biológicas. É um corpo livre para expressar suas múltiplas potências, numa eterna possibilidade de mudança em busca de algo melhor.
Os adeptos dessa corrente de pensamento reconhecem que “monstruosidades” podem ser produzidas pela manipulação genética. Mas apostam que a tecnologia será capaz de remediá-las.
Mas esse é um debate que só está começando.