Uma das características das democracias é que elas são frágeis. É preciso vigilância sobre as instituições democráticas para que elas não sejam corroídas. Algumas vezes, a corrosão é lenta. Outras, vem de choques. Na raiz do enfraquecimento dos regimes democráticos sempre vamos encontrar a condescendência com colegas antidemocráticos. Um fenômeno que parece estar se cristalizando nas principais forças políticas no Brasil.
Na segunda-feira, a deputada federal Gleisi Hoffmann, presidente do PT, tentou explicar a crise da Venezuela pelo pior viés possível. Endossou o discurso do ditador Nicolás Maduro de que há uma armação dos Estados Unidos, que está de olho no petróleo do povo. Ignora o uso da força bruta do regime para se manter no poder, a fome do povo venezuelano e o fato do chavismo ter destruído as instituições democráticas.
A deputada não é uma voz isolada na esquerda brasileira. Durante anos, o PT e outros partidos que orbitavam em torno de Lula fizeram a corte aos socialismo do século 21 lançado por Hugo Chávez. Essa proteção internacional, engrossada por partidos de diversos países e intelectuais socialistas, ajudou o chavismo a se instalar com as armas de qualquer ditadura. A repressão nas ruas, ataques à liberdade de imprensa, controle do Judiciário, manipulação das eleições e formação de milícias paramilitares são uma realidade há mais de uma década na Venezuela.
Mas muita gente prefere viver no sonho de que o chavismo está realmente construindo um mundo melhor. No qual uma elite partidária controla o que sobrou da produção de petróleo e a maior parte da população passa fome e depende de migalhas do governo para sobreviver. O regime conseguiu construir uma base de dependentes e um modelo de repressão amplos o suficiente para se sustentar mesmo diante de sanções internacionais e da falta de apoio da maioria das democracias ocidentais. Internacionalmente, o petróleo comprou apoios, inclusive do lulismo, que viu na relação com Chávez uma oportunidade de ampliar os desmandos dentro da Petrobras.
Gleisi e a parte da esquerda que ainda defende ditadores não estão sozinhos no lado errado da história. O presidente Jair Bolsonaro fez na terça-feira (26) um elogio injustificável ao ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner, dando ainda como brinde para a plateia sua já conhecida visão sobre a ditadura militar brasileira. Nos dois casos, Bolsonaro pode recorrer ao argumento de Gleisi sobre Maduro: foram eleitos de acordo com as regras da época. Stroessener ganhou sete eleições consecutivas e os generais brasileiros foram eleitos pelo Congresso. Robert Mugabe levou quatro eleições no Zimbábue. Não são poucas as ditaduras que brincam de ser democracias.
Um dos capítulos emblemáticos da ditadura paraguaia foi o fato de o Stroessner ter dado abrigo ao nazista Joseph Mengele, o “médico” de Auschwitz que coordenou a morte de centenas de milhares de judeus e fazia experimentos científicos eugenistas com cobaias humanas.
O regime de Stroessner foi repressivo como qualquer outro. A conta de desaparecidos e mortos políticos é de 400 pessoas. E o Paraguai, depois de 35 anos de controle do general, não se tornou uma potência econômica. Bolsonaro deveria saber que erguer hidrelétricas como a de Itaipu não é suficiente para desenvolver um país. Os saudosistas da economia dos anos 70 podem se perguntar por que o sonho do Brasil grande dos militares não deu certo e desembocou na crise da dívida dos anos 80.
Para completar o clima antidemocrático, há um ponto no qual o petismo e o bolsonarismo parecem concordar: a Coreia do Norte não é assim tão ruim. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, deixou escapar em uma entrevista à GloboNews, na segunda-feira (25), que a situação da Venezuela não pode ser comparada com a da Coreia do Norte, sobre a qual disse: “Não sei se [a repressão na Coreia do Norte] necessariamente é com esse grau de brutalidade que se viu neste fim de semana. São situações que não necessariamente se podem comparar”, disse. Como se repressão e fome não fossem parte do regime coreano.
Depois, tentou se justificar via Twitter: “Curioso: a mídia internacional (e a nacional que a copia) só passou a chamar Kim Jong-un de ditador depois que ele começou a negociar com Trump. Antes era ‘o líder da Coreia do Norte’ ou algo respeitoso. A mídia não é contra as ditaduras, a mídia é contra o Ocidente democrático”. A frase é puro diversionismo de quem é condescendente com o regime norte-coreano para não criticar Donald Trump.
Um representante da Coreia do Norte esteve na posse de Gleisi como presidente do PT. Foi bastante aplaudido, junto com o representante de Cuba. Normal para um partido que quando no poder flertou com ditadores de todos os continentes. O bolsonarismo precisa prestar atenção para não ir para o mesmo caminho.