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O Jesus de Saramago

AFP
José Saramago durante lançamento do livro “A Viagem do Elefante” em São Paulo no ano de 2008

O Evangelho segundo Jesus Cristo é um livro intrigante, fruto de uma inteligência exponencial. Poderia se chamar, por exemplo, Confissões de Jesus Cristo, que teria o mesmo efeito.

Para escrever este livro, Saramago precisou mobilizar um conhecimento erudito sobre a vida do homem comum daqueles tempos, sobre os meandros do judaísmo e suas tradições, sobre história do cristianismo.

No início da leitura eu segui pensando que se tratava de um romance histórico, mais ou menos a vida de Jesus como teria sido sem os dogmas da concepção virginal, da filiação divina, etc. E estava muito interessado no fato de que a ficção de Saramago explorava justamente os períodos da vida de Jesus sobre os quais os Evangelhos canônicos nada falam.

Quando o texto chega à vida adulta de Jesus a coisa muda totalmente de figura. O romance assume outros contornos, abandona a verossimilhança histórica que procurou manter firme no início, e passa então a explorar as contradições da história apregoada nos Evangelhos.

Os milagres aparecem ali, a descoberta da filiação divina. O diálogo com Deus, no meio de um nevoeiro do Mar da Galiléia é talvez a peça mais importante do livro, tributária, certamente, do Elogio da loucura, de Erasmo. Ali Saramago satiriza com muita verve todo o Dogma do qual, como bom ateu, aprendeu a escarnecer sem medo.

O catolicismo como um todo sai muito ofendido do livro, que lá Maria não concebe virgem e tem ainda muitos filhos depois do que lhe nasceu da semente divina.

O protestantismo teria muito menos razões para bradar – Anátema!, contra o escritor. Mas pelo que sei, não quis deixar de fazê-lo, talvez com medo de parecer menos zeloso e piedoso.

O livro é um libelo criativo contra o Dogma, contra a religião toda ela. Contra o ridículo da fé e, principalmente, contra a inconsistência de uma narrativa histórica tão cheia de furos. A narrativa costura magistralmente um estilo no qual só há verossimilhança na informação histórica que se pode saber de fontes confiáveis. Aquela que só sabemos pelos Evangelhos tem amplificada o absurdo de sua impossibilidade.

Talvez mesclando a narrativa que se tornou canônica com tudo o que foi imaginado nos evangelhos hoje apócrifos (até o de Judas, recém-descoberto), o Evangelho de Saramago revela toda a humanidade de Jesus, como talvez ninguém tenha feito até hoje.

E aí ele sintetiza melhor do que qualquer tratado de cristologia toda a problemática filosófica que gerou intermináveis 7 séculos de controvérsias sobre quão humano e quão divino era o Galileu. Até que os cristãos desistiram de explicar o inexplicável (que Saramago retoma com fina ironia) e assumiram que a natureza do Cristo, para não por em perigo a religião que sobre a sua memória se construiu, é um mistério inexpugnável: totalmente divino ao mesmo tempo que totalmente humano.

Coisa que os teólogos deixaram de discutir depois dos concílios do 8º século, passando a eleger outras controvérsias mesquinhas (como as que Erasmo não cansou de ironizar pela voz da Loucura). Nem mesmo os reformadores do século XVI questionaram os dogmas centrais, dedicando-se a questões menores como o governo da igreja, o celibato clerical, o tipo de música que se deveria cantar na celebração cúltica, o grau de presença de Cristo nos elementos da Comunhão, o grau de importância entre as Escrituras e a Tradição Eclesiástica e o preço da salvação eterna.

Somente no século XIX, com o surgimento da pesquisa histórica como profissão, e da profusão de estudos científicos sobre a documentação histórica existente, é que se chegou a questionar a cristologia consolidada nos Mil Anos anteriores (dos séculos VIII ao XVIII).

Em fins de mil-e-oitocentos a teologia séria já estava obrigada a lidar com os fatos: não houvera concepção virginal, filiação divina, milagres nem ressurreição. A historicidade da fé cristã era totalmente absurda – luteranos e anglicanos iriam buscar novos fundamentos para sua fé, que já era desde sempre uma vivência comunitária bem mais que uma crença doutrinária.

Os católicos é que teriam os maiores problemas, pois teriam de continuar calcando sua autoridade na autoridade da Igreja e da Tradição – personificadas no papa.

Do outro lado, os calvinistas e pietistas articulariam um novo sentido para a fé, calcado na experiência individual de conversão, conceito surgido por volta de 1700 nos escritos de Spener e Francke e na devoção à Bíblia, que passou a ser (pela primeira vez na história) impressa aos milhões de exemplares pelas Sociedades Bíblicas.

Daí vieram os que no Brasil ficaram conhecidos como “os bíblias”, que andavam sempre com o exemplar encadernado nas axilas, que a sabiam de cor e salteado, sempre lida com acompanhamento da exegese dogmática, sob orientação do missionário ignorante, jamais pensada a partir da rica reflexão teológica que tinha sido obrigada a se defrontar com a verdade sobre o Dogma.

De modo que o livro de Saramago resgata a polêmica ao melhor estilo que alguém poderia fazê-lo: com verve literária e fina ironia. Nada melhor do que um livro de ficção para escancarar os limites ficcionais de certa fé no Dogma.

Porque sim, é isso que os cristianismos integrista e fundamentalista se tornaram no século XX. Há muito que não são uma fé no Cristo, e sim uma fé no Dogma. Porque, como sabem os que tentam ler os Evangelhos com o espírito livre, o Cristo é sempre um seríssimo problema para o Dogma.

É isso que o Evangelho de Saramago escancara, de modo magistral.

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