O mato que cresce na entrada do túnel em Anápolis (GO) é a demonstração mais clara da subutilização do trecho central da Ferrovia Norte-Sul, que vai da cidade goiana até Palmas (TO). Três anos após a inauguração desse trecho, com extensão de 855 quilômetros, foram transportadas apenas três cargas, num total de 45 mil toneladas. Isso representa menos de 1% da estimativa de carga para os cinco primeiros anos da ferrovia, incluindo o trecho Norte – 6 milhões de toneladas por ano.
Nos primeiros quilômetros o que se vê são carros e motos atravessando a ferrovia, além de pessoas que utilizam os trilhos para encurtar caminho na periferia da cidade. A estimativa de custos feita pelo governo não é precisa porque a obra teve início há 30 anos, no governo José Sarney, em 1987. Mas a estatal Valec, que coordenou a construção, aponta um total de R$ 11,7 bilhões, em valores nominais, sendo R$ 4,6 bilhões para o trecho Palmas-Anápolis.
Os contratos de transporte firmados pela Valec no trecho central até o momento geraram uma receita de R$ 31,6 milhões – menos de 1% do custo do trecho. As despesas de operação ficaram em R$ 4 milhões por ano, envolvendo o trabalho de 18 funcionários distribuídos em Palmas, Anápolis e Brasília.
Nos estudos de demanda, a Valec traçou ciclos de cinco a sete anos. Os cenários previam um volume de carga de até 6 milhões de toneladas no início da operação. Passado o primeiro ciclo, o volume seria ampliado para 14 milhões de toneladas, depois para 20 milhões, até chegar ao máximo de 26 milhões de toneladas/ano num prazo de 30 anos.
No trecho central, sob a concessão da Valec, a realidade é bem diferente das expectativas. Desde a inauguração, em maio de 2014, houve o transporte de 18 locomotivas de Anápolis até Imperatriz (MA), em fevereiro de 2015; 26 mil toneladas de farelo de soja para o porto de Itaqui (MA), em dezembro do mesmo ano; e 13 mil toneladas de madeira triturada de Porto Nacional (TO) até Anápolis, de dezembro de 2016 a março de 2017.
Uma ferrovia sem trens
Questionada sobre os motivos da atual subutilização do trecho Palmas-Anápolis, a Valec afirmou que “não possui locomotivas e vagões”, mas detém a gestão da manutenção da infraestrutura ferroviária e disponibiliza as suas vias aos operadores interessados. “Todo o transporte a ser realizado neste trecho depende da iniciativa privada, das negociações comerciais entre os operadores e seus clientes e do próprio interesse comercial dos operadores logísticos ferroviários”, disse a estatal em nota à Gazeta do Povo.
Sobre uma possível superestimativa da demanda de carga, a estatal respondeu: “Da parte da Valec, as iniciativas para implantar as condições operacionais adequadas para o incremento do transporte na Ferrovia Norte-Sul estão acontecendo”.
Até o início do próximo ano, o trecho Palmas-Anápolis e a extensão de Ouro Verde (GO) a Estrela D’Oeste (SP), com 682 quilômetros, serão colocados em licitação. A extensão até São Paulo, com execução de mais de 90%, terá investimentos totais de R$ 5,5 bilhões. A operação dos dois trechos passará para as mãos da iniciativa privada.
“Falha colossal de planejamento”
O diretor-executivo da Confederação Nacional do Transporte (CNT), Bruno Batista, aponta o motivo da atual subutilização: “Que existiu uma falha colossal de planejamento isso não há dúvida. Esse trecho demorou para ser construído. A ferrovia toda está muito atrasada, começou na década de 80. Mas, por outro lado, precisa ser complementada. Ainda não foi feita a construção de linhas complementares, os pátios, nenhuma instalação de armazenagem. Como se imagina que vá atender o escoamento de grãos, ela precisa ter silos, precisa de rodovias que cheguem até esses terminais de transbordo. É preciso obras complementares para que ela possa ser operacional”.
Questionado se o governo não teve tempo para pensar nisso tudo nesses 30 anos de obras, Batista respondeu: “Isso é inexplicável. Não faz sentido se planejar uma ferrovia para, quando ela estiver pronta, não ter acesso, não ter as condições operacionais. Mais do que inexplicável, esse é um grande desserviço ao país. Não faz sentido um país que tem um baixo nível de investimento, ao realizá-lo, você tem uma infraestrutura cara em condições de subuso. De fato, é uma situação absurda isso”.
Direito de passagem
Outro entrave apresentado pela CNT é a questão do direito de passagem – a garantia de que o trem de uma concessionária possa passar pela malha de outra mediante pagamento. “O fracionamento da malha da rede em várias concessões foi válido para diversificar as fontes de investimento, mas a questão do direito de passagem é fundamental porque, se você fica com um trecho que não dá garantia de acesso ao porto, a ferrovia não faz sentido”, afirma Batista.
O diretor-executivo da CNT acrescentou que, quando o governo anunciou a Norte-Sul como um negócio para ser direcionado à iniciativa privada, o questionamento foi óbvio: “Salvo engano, os investidores chineses disseram que, sem o direito de passagem, esse projeto não é atrativo”. Mas ele lembra que a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) já abriu uma séria de audiências públicas para discutir o assunto.
Sobre a ferrovia, Batista afirma que “a importância da Norte-Sul é inconteste. Ela é importante para o país. O sentido da ferrovia é permitir a conexão de trechos transversais a um eixo estruturante longitudinal. Por isso foram previstos os projetos complementares da Fiol (Oeste-Leste) e da Fico (Centro-Oeste) para dar atratividade maior para a ferrovia”.
Trecho Norte em operação
Enquanto o trecho central engatinha, o trecho norte, com 720 quilômetros, está em plena operação. Concessionado em 2007 para a VLI – que tem como sócios as empresas Vale, Mitsui, Brookfield e o Fundo de Investimento do FGTS – o trecho entre Açailândia (MA) e Palmas já movimenta 5 milhões de toneladas por ano. Nos dois primeiros anos de operação, já transportava 1,5 milhão de toneladas.
A empresa explica o que uma ferrovia precisa para funcionar bem: “Para uma ferrovia transportar um volume desses não é necessário apenas os trilhos. É preciso toda uma infraestrutura como locomotivas e vagões para transportar a carga, terminais rodoferroviários para receber as cargas da rodovia e transferir para os trilhos, boas estradas para levar essas cargas das fazendas até os terminais rodoferroviários e principalmente capacidade portuária”.
Sobre o direito de passagem, a VLI informa que possui contratos de longo prazo com a Estrada de Ferro Carajás e Transnordestina para a passagem dos trens no trecho. A concessionária acredita que “o futuro operador do tramo central da Norte-Sul também utilizará esse instrumento, viabilizando a passagem dos trens tanto em direção aos portos do Sudeste quanto do Norte/Nordeste. O compartilhamento da malha deverá ocorrer normalmente como já acontece em outras malhas concedidas”.