O general Emílio Garrastazu Médici adotou a neta Cláudia Candal aos 79 anos, um ano e oito meses antes de morrer. Onze dias após a adoção, em fevereiro de 1984, declarou a então filha adotiva como beneficiária na Seção de Pensionistas do Exército. Cláudia tinha 21 anos, não residia com o avô e tinha pai vivo com emprego de alta remuneração.
Seria mais um caso de adoção para efeito previdenciário considerado ilegal pelo Tribunal de Contas da União (TCU) se não envolvesse o general que presidiu o país com mão de ferro de 1969 a 1974, durante a ditadura militar. A neta assegurou o direito ao benefício na Justiça.
Na mesma sessão que julgou o caso de Cláudia, foram analisados mais três casos de adoção com fins previdenciários, todos considerados ilegais. Aos 87 anos, o militar Oscar Passos adotou a neta Magali Passos, com 41 anos de idade, separada judicialmente, geógrafa e professora pública estadual.
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Athenolindo dos Santos, aos 79 anos, sem filhos, declarou Luisa Ferreira como sua dependente, tendo ela pai e mãe vivos. E a mãe já era pensionista militar. Michel do Espírito Santo, com 76 anos, adotou Rosina Brahim, advogada, maior de idade e com pais vivos. Para o TCU, “as adoções tiveram como único propósito a perpetuação da pensão como se herança fosse”.
As pensões das filhas de militares custam R$ 6 bilhões por ano aos cofres públicos, como mostrou reportagem publicada no blog dia 17 de abril deste ano. São 87 mil filhas pensionistas, que podem ser solteiras, casadas, divorciadas ou ter união estável. O valor médio das pensões fica em R$ 5,3 mil – quase o teto previdenciário –, mas 11 mil delas têm renda entre R$ 10 mil e R$ 20 mil.
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As pensões militares são regidas pela Lei 3.765 de 1960, sancionada há mais de meio século, mas alterada pela Medida Provisória 2.215-10 de 2001. A MP assegurou aos militares a manutenção dos benefícios previstos na lei original mediante o acréscimo de 1,5% na contribuição previdenciária. Pensões já concedidas foram preservadas.
“Manobra para burlar a lei”
A pensão de Cláudia Candal foi considerada irregular pela administração pública e suspensa em 2005, mais de 20 anos após ser concedida, iniciando uma batalha judicial. A pensionista conseguiu decisão favorável na Justiça Federal no Rio de Janeiro, mas perdeu no Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região. Em julho de 2008, a Sétima Turma do TRF2 derrubou a decisão de primeira instância.
O TRF2 argumentou que “a finalidade da adoção deve ser prestar assistência material, amparo moral e educacional, não podendo o instituto ser usado como manobra para burlar lei previdenciária desfavorável. O direito a benefícios previdenciários deve ser uma consequência desse ato jurídico e não sua causa, tanto que a prática de postular pedido de guarda para fins previdenciários é fortemente rechaçada pela jurisprudência pátria”.
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O caso foi parar no Superior Tribunal de Justiça (STJ). O tribunal destacou que a Justiça Federal de primeira instância concluiu que Cláudia não se encontrava em situação irregular quando de sua adoção. E concluiu: “Deve o ato ser considerado plenamente válido e eficaz, inclusive para efeito de percepção da pensão militar. A Constituição Federal veda qualquer tipo de discriminação entre filhos adotivos e naturais, impedindo a interpretação de que a adoção em discussão não poderia surtir efeitos previdenciários”. Em junho de 2011, o STJ restabeleceu a pensão de Cláudia.
O TCU decidiu, em fevereiro de 2012, que a decisão do Judiciário quanto à pensão de Cláudia Candal “não elide a irregularidade constada pelo tribunal nem impede o julgamento por esta Corte”. Mas acrescentou que o tribunal deveria “abster-se quanto à determinação para fazer cessar os pagamentos decorrentes do ato, uma vez que a decisão judicial que os ampara transitou em julgado”.
Herança negada
Com a sua adoção considerada válida, Cláudia Candal tentou ser incluída como herdeira dos bens do general Médici e da sua mulher, Scylla Gafrée, falecida em 2003 – uma fazenda e um apartamento. O caso também foi parar no STJ. O ministro relator Raul Araújo deu voto favorável à neta do militar. Disse que “a adoção era válida e eficaz” e que não se admitia nenhuma discriminação quanto a filho adotado. “A recorrente possui legitimidade para habilitar-se no inventário como herdeira legítima”.
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Mas a Quarta Turma do STJ adotou a posição do ministro Luis Felipe Salomão, para quem a adoção em exame “não conferia direitos sucessórios ao adotado”. “Não há outra explicação lógica para a adoção cartorária como a ora em exame, entre avós e neta maior de idade, senão a de que foi levada a efeito para fins exclusivamente previdenciários (…) A mencionada adoção não visou outro propósito senão ao recebimento de pensão militar, que somente era paga a filhas de militares”.
O advogado que defendeu Cláudia Candal no STJ, Manoel Franco, foi procurado pela reportagem e informado sobre o conteúdo da matéria. Não houve retorno.