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Cooperação militar dos EUA almejada por Bolsonaro já foi intensa na ditadura, revela documento secreto

Jonathan Campos/Gazeta do Povo (Foto: )

Colaborou Renan Barbosa

A cooperação militar com os Estados Unidos que o governo Jair Bolsonaro tanto almeja já foi bastante intensa há cerca de 50 anos, durante a ditadura dos generais brasileiros. Documento secreto da Embaixada Americana no Brasil datado de 22 de agosto de 1967, obtido pelo blog, mostra como era o relacionamento entre militares dos dois países nas ações de prevenção e vigilância às atividades de opositores do governo militar.

Os EUA forneceram ao país expertise, equipamentos, informações, treinamentos e cursos ministrados por militares americanos de alta patente – houve eventos do tipo na Escola Superior de Guerra e no próprio Comando do Exército. O mundo vivia os tempos da Guerra Fria, que opunha os regimes capitalista dos Estados Unidos e comunista da então União Soviética.

O interesse americano era claro: evitar que revoluções socialistas como a de Cuba, em 1959, se repetissem em outros países da América Latina. Daí, o interesse na cooperação com o Brasil.

“Os programas e conselheiros de segurança pública da USAID [Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional] forneceram assistência essencial às organizações policiais de dez dos estados mais populosos do Brasil em esforços para melhorar a seleção de pessoal, padrões e treinamento, sistemas de comunicações e instalações e eficácia operacional”, diz o documento guardado no Arquivo Nacional, em Brasília.

Relatório enviado pela Embaixada Americana ao Departamento de Estado dos EUA registra que “os cursos de extensão também são um elemento importante de contribuição dos Estados Unidos para a conscientização e conhecimento brasileiro da contra-insurgência e temas associados. Existe atualmente um total de 371 oficiais matriculados em cursos de extensão em COIN [contra-insurgência], enquanto cerca de 700 já completaram tais estudos”.

Mais adiante, a embaixada informa que, em 1966, “mais de 23 mil membros de agências de polícia completaram cursos locais de treinamento fortalecendo e melhorando sua capacidade e eficácia no enfrentamento das ameaças de desordem pública”. O documento acrescenta que “de vital importância para a utilização de forças policiais tem sido o fornecimento pela USAID de unidades móveis de comunicação que melhoraram consideravelmente a capacidade de as forças de segurança dos estados receptores para reagir rapidamente a qualquer emergência”.

O documento diz que, com a ajuda de militares dos EUA e programas e assessores da USAID, as Forças Armadas brasileiras e os elementos da Polícia Civil “têm feito melhoria significativa no campo da contra-insurgência. Programas atuais e planejados irão sustentar novos aumentos de capacidade e eficácia. As escolas de serviço militar em todos os níveis, incluindo a Escola Superior de Guerra, têm dado maior ênfase e esforço para palestras e cursos em contra-insurgência”.

A embaixada afirmou que assessores militares estavam fornecendo orientação apropriada e material do serviço de treinamento e fontes educacionais dos Estados Unidos: “A convite de autoridades militares brasileiras, Major General DuPuy [comandante de tropas no Vietnã], assistente especial do presidente do Estado-Maior Conjunto para contra-insurgência e atividades especiais, lecionou recentemente para a Escola Superior de Guerra e o Comando do Exército”.

O documento secreto (veja acima), que foi desclassificado em junho de 2015, mostra que os americanos tinham pleno conhecimento dos equipamentos, estratégias, planos e ações dos militares brasileiros. Sabiam que, no Centro de Treinamento de Guerra de Selva na Amazônia, havia começado um curso especial de contra-insurgência. A pedido dos brasileiros, os conselheiros militares dos Estados Unidos estavam colaborando na formulação do curso com o treinamento e material de instrução.

O relatório informa que equipamentos de comunicação recém-recebidos estavam sendo usados para iniciar uma moderna e efetiva comunicação entre os comandos de área do Exército e suas unidades de campo. “Quando completo, isso irá fornecer, pela primeira vez, uma rede completamente confiável entre as unidades amplamente separadas nas áreas militares. A reorganização planejada pelo Exército brasileiro para mais compactas e efetivas unidades móveis com comunicações e transporte vai aumentar significativamente a capacidade de reagir rápido e efetivamente contra ameaças de insurgências”.

O documento descreve em detalhes os equipamentos militares brasileiros e sua capacidade de ação: “A unidade transportadora aérea no Rio, quase completamente reequipada, agora tem a capacidade, com a compra da Força Aérea de dez C-130, de reforçar unidades periféricas ou de cair em locais isolados em qualquer lugar no seu vasto território em questão de horas após um alerta”.

Informantes na zona rural

Relata também a atuação de informantes civis: “Oficiais de inteligência militar em unidades periféricas desenvolveram um sistema eficaz de relatórios que envolve a utilização de elementos civis selecionados das zonas rurais para reportarem eventos de interesse de inteligência. Nestas áreas, o seu efeito é particularmente eficaz, uma vez que os militares são altamente estimados pela maioria da população rural e qualquer esforço dos insurgentes para obter apoio ideológico ou logístico local seria provavelmente imediatamente relatado”.

A embaixada informou que o presidente Costa e Silva decretou, em maio de 1967, a criação do Centro de Inteligência Arca, para dar maior ênfase a treinamento de contra-inteligência e desenvolver maior capacidade de avaliação de informação. “Os consultores de inteligência do Exército dos Estados Unidos colaboram estreitamente com as autoridades de inteligência do Exército tanto neste projeto e em uma série de novos cursos na atual escola de inteligência. Equipes de treinamento da Força Aérea dos Estados Unidos têm trabalhado no país com a Força Aérea Brasileira em técnicas e procedimentos, embora a FAB não possua uma adequada frota de aeronave”.

O relatório trata até mesmo da ‘doutrinação’ dos jovens. “Todas as unidades de Forças Armadas têm responsabilidade de contra-insurgência, e este assunto é uma parte importante da unidade regular de instrução e treinamento. Isso se torna particularmente importante quando considerado que cerca de 100 mil recrutas voltam à vida civil a cada ano. Todos esses jovens passam por uma considerável doutrinação quanto aos propósitos e procedimentos dos esforços comunistas e levam com eles uma apreciação muito melhor de como reconhecer e lidar com a guerrilha comunista ou outras atividades”.

A guerrilha sem apoio

A Embaixada relatou que já existiam, naquela época, dentro e fora de Brasil, grupos que defendiam “o uso imediato de violência armada, na forma de movimentos de guerrilha, para derrubar o governo do Brasil. Contudo, acredita-se que esses grupos individualmente não têm ainda apoio popular suficiente, organização, financiamento, pessoal treinado ou contatos internacionais para montar atividades de guerrilha eficazes com sucesso no Brasil. No presente momento, nenhum desses grupos deu uma indicação de unir forças em atividades de guerrilha”.

O relatório lembra que, desde a ‘revolução’ de março de 1964, a maioria dos atos de terrorismo que ocorreram no Brasil pareceram ser incidentes isolados e não como parte de um plano coordenado para as atividades de guerrilha. “Houve um certo número de instâncias de menor insurgência contra o governo nos últimos três anos em que o ex-deputado Leonel Brizola foi citado como força motivadora. Todas essas atividades foram rapidamente dissipadas por forças de segurança brasileiras e pode-se notar que nenhum desses esforços recebeu apoio popular”.

Mas as forças de segurança brasileiras estavam apreensivas com as operações de guerrilha que aconteciam em vários países vizinhos, assim como também as atividades dos exilados no Uruguai e a conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade em curso em Cuba. “No entanto, eles sentem que são competentes para lidar com qualquer ameaça”, relataram os diplomatas.

O documento registra que, embora o acesso da Embaixada aos vários grupos dissidentes variasse, a cobertura era aumentada substancialmente pela ligação com os serviços de inteligência brasileiros. A Embaixada avalia haver uma “alta probabilidade” de saber antecipadamente de participação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em atividades de guerrilha e uma “boa probabilidade” de conhecimento antecipado nos casos do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e da Ação Popular (AP).

Militares cometeram erros e acertos

A história mostra que os militares brasileiros e americanos acertaram mais do que erraram em relação à articulação dos movimentos de guerrilha. Até 1967, data do documento da Embaixada Americana, os grupos que defendiam a luta armada atuavam de forma isolada, não tinham apoio financeiro nem popular suficientes para uma ofensiva guerrilheira em larga escala.

Mas os serviços de informação não foram capazes de detectar que, no ano anterior, os primeiros líderes do PCdoB já haviam chegado à região do rio Araguaia, nas proximidades de Marabá (PA). Entre eles estava Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão. Os militantes eram estudantes e profissionais liberais vindos de vários estados. Misturavam-se com habitantes locais e aprendiam seus hábitos, enquanto faziam a sua pregação política.

Os militares chegaram em Xambioá, na região do Bico do Papagaio, hoje no estado do Tocantins, em abril de 1972 – quase cinco anos depois da elaboração do documento da Embaixada Americana, portanto. Eles teriam descoberto a guerrilha no fim de 1971, quando o guerrilheiro Pedro Albuquerque foi preso, após fugir com a esposa grávida, e tentar tirar um documento em Fortaleza.

Mas os guerrilheiros não estavam preparados para o combate. Tinham apenas 25 fuzis e 34 espingardas, além de revólveres, e pouca munição. Eram 70 combatentes contra cerca de 2 mil militares. Ainda assim, a luta nas florestas durou até janeiro de 1974. Foram todos mortos ou presos. A maioria dos corpos nunca foi encontrada.

Brasil busca reaproximação e cooperação militar

A chegada de Bolsonaro ao poder abriu caminho para um aprofundamento da relação entre Brasil e Estados Unidos, inclusive na área de cooperação militar. O Itamaraty pretende reativar com prioridade mecanismos bilaterais para viabilizar a agenda econômica. Mas também terá atenção especial o Diálogo Estratégico Político-Militar, com maior envolvimento dos governos na orientação às empresas privadas de segurança e defesa.

O primeiro passo efetivo no projeto de aproximação com os EUA será a viagem do presidente Jair Bolsonaro a Washington, que ocorrerá entre 17 e 19 de março. Documento em elaboração no Itamaraty prevê três eixos de ação: integração econômica; promoção da democracia, da liberdade e da soberania nacional; e parceria de defesa e cooperação em segurança, o tópico mais extenso do documento.

Está em estudos até mesmo a participação do Brasil na Coalização para a Derrota do Estado Islâmico, liderada pelos americanos. O Brasil poderá cooperar enviando aviões e armas ou apenas simbolicamente.

A cooperação em defesa prevê ainda conversas para que os Estados Unidos apoiem o ingresso do Brasil como nação aliada da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e da Força Aérea Brasileira à Força-Tarefa Conjunta Interagentes (JIATF) para combate ao narcotráfico; maior troca de informação na área de não proliferação nuclear, incluindo em relação à Coreia do Norte; coordenação de posições no Oriente Médio; e a cooperação em temas de cibersegurança e de tecnologias não tripuladas.

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