Evangelista Santos teve uma espécie de premonição quando assinou com o Bellator, no início de 2016. O lutador sentia que algo de ruim aconteceria com ele.
“A galera pode achar que é loucura, mas sou muito perceptivo, meu sexto sentido é muito aguçado. A partir do momento que assinei o contrato, diariamente eu sentia que uma armadilha estava sendo preparada”, explica o mato-grossense Cyborg, de 39 anos — 20 deles dedicados à luta.
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Em sua terceira luta pela organização, no dia 16 de julho, o pressentimento virou realidade. No segundo round do duelo contra o inglês Michael Page, em Londres, uma joelhada voadora fez um estrago assustador em seu rosto.
A lesão — um afundamento de crânio — chocou o mundo. Não ele.
“Hora nenhuma eu me preocupei”, relata Santos, que se considera bastante religioso.
“Claro, doeu ali no momento. Mas três, quatro segundos depois já passou na minha cabeça: ‘Postura, bicho’. Aí já vi que que tinha quebrado nariz, e fui levantando. Eles queriam que eu ficasse no chão para botar oxigênio e sair de maca, falei que não. Entrei andando, saio andando. Até porque não tinha noção da gravidade. Fiquei bravo pra caramba”, prossegue.
Cyborg foi levado às pressas da O2 Arena para o hospital. Só aí que percebeu o que realmente havia acontecido: ele estava desfigurado.
“Perguntei para a enfermeira em quando tempo poderia voltar a lutar. Ela falou: primeiro passa a mão na tua testa. Imaginei que tivesse uma bola na testa. Pedi o celular e quando vi estava afundado. Tirei as fotos e mandei pros meus alunos”, conta.
Fotos: Arquivo Pessoal e Henry Miller/Gazeta do Povo
As imagens vitalizaram na internet. Cyborg permaneceu no hospital por mais alguns dias até viajar aos Estados Unidos, onde morava na época, e implantar uma placa de titânio na cabeça.
Cerca de seis meses depois da cirurgia, o aluno da academia Chute Boxe avisou que estava se aposentando após 50 lutas na carreira (11 vitórias não aparecem no seu cartel por terem acontecido em torneios menores). Ao todo, são 32 vitórias e 18 derrotas.
Hoje, quase um ano da lesão mais séria da carreira, o pensamento mudou. O objetivo ainda é pendurar as luvas com 60 combates.
“Tenho 39 anos, o Dan Henderson disputou cinturão com 45. Falei que aposentei para ninguém ficar enchendo o saco, para ocupar a cabeça com minhas aulas e recuperar das minhas lesões, mas nada me impede de voltar em um ou dois anos…. A aposentadoria pode ser provisória e temporária”, revela.
“Se me der vontade de lutar no futuro — e com certeza vai dar — só quero estar me sentindo bem porque não adianta ir apenas com a vontade se o corpo não estiver respondendo. Se tiver treinando bem, vou voltar à ativa pra fazer as 10 lutas que estão faltando e cumprir meu objetivo”, avisa.
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Inferno curitibano
Por incrível que pareça, Evangelista recebeu o apelido de Cyborg bem antes de ganhar fama na luta. O nome partiu de uma antiga namorada que lhe acusava de não ter sentimentos quando eles brigavam.
Mas foi em 2004, quando decidiu sair do Mato Grosso para evoluir como atleta no Paraná, que ele sentiu o que era frieza de verdade. Convidado por Rudimar Fedrigo a passar por um período de avaliação na Chute Boxe, o lutador percebeu que não era bem-vindo na academia.
Naquela época, lutadores como Wanderlei Silva, Maurício Shogun, Murilo Ninja, Jorge Patino Macaco e Daniel Acácio eram os principais destaques do time. Rafael Cordeiro comandava os treinos. Um sofrimento diário para o forasteiro.
“Foram 45 dias de terror e pânico. Eles não queriam que eu permanecesse, todo dia saia na porrada com os caras, essa é a verdade. As pessoas que pertenceram ao período sabem disso. Todo dia vinha pra guerra e voltava todo ferrado”, lembra.
Também foi na capital paranaense, dentro da academia, que Evangelista conheceu Cristiane Justino. Dois meses depois de se mudar para Curitiba, ele começou a namorar com futura lutadora, com quem foi casado por sete anos.
Cris, que herdou a alcunha Cyborg, hoje é mais reconhecida do que o original.
“As pessoas têm memória curta, mas não incomoda. Cris é uma pessoa por quem sempre vou ter grande carinho, grande respeito, admiração pelo trabalho dela. Ela está fazendo jus à semente que foi plantada. Se você ver a característica dela, ela representa realmente a essência do Cyborg. Virou uma máquina até mais sofisticada do que eu”, admite o mato-grossense.
Combate à geração “nutella”
Cyborg retornou a Curitiba no início de 2017 para dar aulas e iniciar um processo de formação de atletas na Chute Boxe. Seu projeto é ficar na cidade por um ano e depois voltar aos EUA para morar com a filha.
“Vi que a Chute Boxe estava precisando da minha ajuda”, afirma o lutador, que se empenha em passar seus conhecimentos para a nova geração.
Segundo ele, hoje grande parte dos atletas de MMA querem competir mais por status do que por vocação. E é exatamente isso que o veterano tenta combater. Uma geração de lutadores “nutella”.
“A esmagadora maioria é nutella. Posso falar isso com convicção. Te garanto que 70% dos lutadores estão ali de oba-oba, estão ali enquanto está bom. Você pode peneirar e cabe nos dedos de uma mão os que tem o coração de um Minotauro, Wanderlei, Sakuraba, Dan Henderson, caras que dão a vida pela parada”, argumenta, enquanto defende a maneira com que aprendeu a lutar.
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“Não adianta ficar enganando atletas profissionais, falando que estão demais… Quanto mais próximo da realidade melhor. As dificuldades tem de ser trabalhadas aqui [no treino] para o cérebro não entrar em pânico quando for posto na situação de desconforto. O problema de muita gente é que quando está bom, está bom. Quando começa a ficar ruim, pede pra sair”, ironiza o lutador.
Experiência de campo Cyborg tem de sobra. Ele já participou de lutas sem luvas, sem limite de tempo e praticamente sem regras, por exemplo. Por isso, sabe o que é necessário para ser bem-sucedido no ringue. E nada supera o esforço.
“Há os campeões e os ajudantes de campeões. Você escolhe de que lado quer estar”, ensina.
“Se quer ser ajudante pode vir três vezes por semana para a academia, mando fazer 100 sprawls, você faz 50. O campeão, não. Pedi 100, ele faz 150. Se a aula começa 9h30, ele vai estar lá 9 horas. Se acaba 11h30, ele fica ate meio-dia. É assim que defino meus atletas. Se quer ser campeão é obrigado a pagar um preço”, completa.