Soa um pouco arrogante um festival de música se adjetivar como “avançado”, em qualquer sentido. Mas a 2º versão brasileira do Sónar explicou do que se trata esse algo a mais, visível em diversos aspectos que não só as 48 atrações – entre elas DJs esquisitões, experiências silenciosas, Fifa 2012 e escoceses capazes de deixar um público estriquinado. A começar pelo espaço onde ele aconteceu, no último fim de semana, em São Paulo.
Nunca pensei que um centro de convenções poderia se tornar um lugar tão divertido. O Anhembi — utilizado normalmente para exposições e eventos como Salão do Automóvel – é gigantesco (são 400 mil metros quadrados) e funcional, e recebeu com tranquilidade 16 mil pessoas na sexta-feira e 14 mil no sábado. Os shows aconteceram em três palcos cobertos, sendo um deles um anfiteatro, e ainda havia o SonarCinema, para projeções de documentários musicais.
O adjetivo “avançado” faz ainda mais sentido quando percebemos – e vivemos – algo que deveria ser sempre levado em consideração, não só em festivais de música, mas em qualquer situação em que haja um grupo de pessoas reunido: o bom senso.
Um exemplo. Para receber a pulseira que comprovava a maioridade, e por consequência liberava a compra e consumo de bebidas alcoólicas, não era necessário enfrentar uma fila imensa e específica para isso e mostrar seu RG – procedimento padrão em outros grandes festivais. No próprio bar, uma moça simpática verificava se você tinha ou não pelos na cara e já lhe dava a pulseirinha junto com a cerveja – Miller gelada, a R$ 7. Quem aparentava menos de 18 anos – a classificação indicativa do Sónar era de 16 –, aí sim tinha de mostrar o documento de identidade, sempre com aquela foto assustadora.
Outro ponto foi o cigarro. Por mais que seguranças circulassem pelo evento, várias pessoas fumavam normalmente. É proibido por lei fumar em locais fechados, e isso é indiscutível. Mas o Sónar optou por não coibir o cigarro, não totalmente, ao menos, deixando toda a discussão e suas possíveis consequências a cargo de quem realmente está envolvido no processo. Por isso mesmo vi e ouvi mais de uma vez uma pessoa pedindo educadamente a outra para que apagasse seu vício. O pedido foi atendido tranquilamente. O objetivo do blog não é levantar polêmica a respeito de uma das únicas leis que deu certo no Brasil, longe disso. O que creio é que as vistas grossas tenham sido mais um crédito de confiança do propriamente falta de rigor.
Isto posto, vamos à música.
Só estive no Sónar no sábado, dia 12. Perdi o show 3D do Kraftwerk – que foi espetacular, segundo relatos dos sobreviventes. Mas o real motivo da viagem foi o Mogwai, que só subiria ao palco do SonarHall – o tal anfiteatro – às 22h30. Como cheguei ao Anhembi 18h30, deu pra assistir a um punhado de coisa e perceber, de leve, para onde está indo a música contemporânea.
Foi ao som do beatmaker Pazes que entrei no Anhembi e já fui agraciado com um pacote de Doritos Ranch – muitos outros ainda surgiriam, mesmo se você não quisesse. Ainda ao som do brasileiro, dei uma circulada e vi que rolava um Fifa 2012 em um telão gigante. Não era o momento ideal para se jogar videogame, mas o Sónar começava a me conquistar.
Às 21h15, foi a hora da dupla Alva Noto & Sakamoto (Ajinomoto para muitos) valorizar o silêncio e inventar moda. A dupla nipogermânica, com laptop e piano, mistura elementos minimalistas a melodias sincopadas. A apresentação aconteceu no anfiteatro, e foi completamente contemplativa. Ouvia-se um silêncio respeitoso, digno daqueles que acontecem entre as partes de uma sinfonia.
A certa altura, o japonês do piano, como um John Cage menos radical, retransformou o instrumento, tocando diretamente em suas cordas e fazendo percussão em sua estrutura amadeirada. Bonito.
Saí um pouco antes do fim para ver o escocês Rustie e o que chamam de maximalismo eletrônico. A ideia parece ser abolir viradas, aceleração de batidas e alternâncias de ritmos, muito comuns na música eletrônica. Quando esse momento se aproximava, o óbvio passava longe e algo surpreendente surgia. Nas músicas melódicas, comparativamente, era como se a tensão nunca fosse aliviada, como se aquele acorde aconchegante jamais existisse. Interessante.
Chegava o momento Mogwai. E foi mais ou menos assim.
Imagine-se em um barco pequeno em alto mar. Nele, batem ondas gigantes, monstruosas. Mas, antes de entrar nesse barco, você sabe previamente que nada de ruim irá acontecer e que só resta, enfim, o prazer saboroso daquela sensação particularmente desafiadora.
Talvez por isso muitos logo depois do show andavam para lá e para cá como se, mareados, tentassem buscar uma resposta coerente ou racional para o que tinham acabado de presenciar.
Os escoceses voltaram ao Brasil depois de dez anos, divulgando o disco Hardcore Will Never Die But You Will. Expoentes do pós-rock, construíram no Anhembi um ambiente ao mesmo tempo violento e sublime. A alternância entre calmaria e estremecimento, uma das características do gênero do qual também fazem parte ótimas bandas como This Will Destroy You, God Speed You Black Emperor! e God is an Astronaut, foi exemplificada de forma assustadoramente contundente.
Exceto pelo guitarrista e vocalista Stuart Braithwaite, que parece sempre estar lutando com alguém invisível e que sorri em momentos incomuns, a banda, como um todo, não busca uma performance visualmente impactante, até porque isso funcionaria como um pleonasmo. Toda a proposta sonora de Mogwai ao vivo já é naturalmente grandiloquente.
Isso por causa das diversas camadas sonoras propiciadas pelas guitarras, ora sujas, ora angelicais; e do baixo, que nos faz lembrar que existe a palavra entropia. É uma mistura perfeita de força e destreza, euforia e plenitude. É do tipo de experiência que todo mundo deveria sentir. Por isso, fica difícil de responder quando alguém te pergunta simplesmente “ e aí, como foi?”
O som impecável do espaço foi ingrediente fundamental para um dos melhores shows que eu e muita gente presenciou em vida. Foram só dez músicas, a maioria do último disco. No final apoteótico, toda a força de “Batcat”, segunda faixa de The Hawk is Howling (2008). O show acabou e algumas pessoas começaram a se abraçar. Outras olhavam para cima, como se buscassem uma resposta divina para o que tinha acontecido. Não há comparação nenhuma com o que se passou lá, mas eis o vídeo da última música:
Passada a catarse, vi o Four Tet em uma apresentação regular – os últimos trabalhos são bem menos interessantes do que os outros. E conferi rapidamente o neozelandês Munchi, cabeludo que brincou até com ritmos latinos. Mas não havia muito mais a se fazer a não ser procurar o silêncio do mundo depois de tanto barulho.