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Papelão do STF é muito mais grave que o indulto de Temer

O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, e o presidente Michel Temer participam de sessão solene no Supremo Tribunal Federal (STF) em comemoração aos 30 anos da Constituição brasileira. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil. (Foto: )

O papelão a que o Supremo Tribunal Federal (STF) se prestou nesta quinta-feira (29) é muito mais grave que a eventual aplicação do decreto de indulto editado pelo presidente Michel Temer (MDB) em dezembro de 2017. Os dois grupos em que o tribunal se dividiu no contexto pós-Lava Jato – que se refletia, quando Cármen Lúcia ainda era presidente, nos apelidos das duas turmas: “Jardim do Éden” e “Câmara de Gás” – protagonizaram o mais criativo festival de manobras, estratagemas e chicanas já ocorrido no plenário da corte.

Uma breve rememoração dos fatos. O presidente Michel Temer (MDB) editou o Decreto 9.246/2017. Por tradição, os presidentes fazem isso todos os anos em dezembro, como exercício da competência que a Constituição Federal lhes garante em seu artigo 84, inciso XII. Não precisariam fazer, mas fazem. Trata-se, basicamente, de um perdão das penas – e só das penas – para quem já cumpriu certos requisitos que o decreto estabelece. Importante: a própria Constituição, no inciso XLIII ao artigo 5º, exclui a possibilidade de indultar “a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos”.

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O presidente ouve o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) antes de editar o decreto, mas não é obrigado a seguir a minuta apresentada pelos conselheiros. Na linguagem técnica, diz-se que o poder do presidente é discricionário: está limitado pela lei, mas, dentro desses limites, é o Poder Executivo que avalia a conveniência da sua decisão. Os decretos de indulto vêm ficando cada vez mais complexos nos últimos anos, mas o presidente Michel Temer inovou em estabelecer o cumprimento de um quinto, e não mais um quarto, da pena de não reincidentes em crimes sem grave ameaça ou violência contra a pessoa (corrupção está aqui) e ao derrubar a exigência de a pena do condenado não ser maior que 12 anos. (Por tradição, os decretos anteriores ao de 2016 estabeleciam o cumprimento de um terço da pena para fazer jus ao benefício; acompanhei de perto a elaboração do decreto de 2016, e a mudança para um quarto, naquela ocasião, não teve nada a ver com os crimes de corrupção.)

O busílis começou aqui. A Procuradoria-Geral da República (PGR) viu as novas regras como destinadas a facilitar a vida dos condenados por corrupção, acionou o Supremo e, durante o recesso, a ministra Cármen Lúcia, então presidente, suspendeu o decreto. Na volta das férias, o caso foi parar com o ministro Roberto Barroso que, primeiro, manteve a suspensão total e, depois, manteve suspensos apenas os pontos controversos.

No fundo, o argumento de Barroso é simples: todo ato discricionário é limitado pela lei e pela Constituição, mas os limites, nesse caso, não são apenas os estabelecidos pelo próprio texto constitucional (artigo 5º, XLIII), mas por uma série de princípios constitucionais – basta elencar, por exemplo, dois previstos no artigo 37: moralidade e probidade. É o mesmo argumento utilizado por ministros do Supremo para barrar a indicação de ministros do Poder Executivo: já aconteceu três vezes, com Cristiane Brasil (Temer), Moreira Franco (Temer) e Lula da Silva (Dilma). Dois casos que acabaram sem posse, e outro que acabou com a posse, sem que o tribunal chegasse a discutir. (É também o mesmo argumento, em essência, que Barroso utiliza para querer legalizar o aborto.)

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A discussão pública sobre a questão jurídica se reflete no autismo dos dois grupos do tribunal. A última coisa que parecia estar em jogo ali era, afinal, a pergunta sobre se há, e quais, limites ao poder presidencial de indultar fora daqueles estabelecidos pelo próprio texto constitucional. Um lado esgrimia princípios genéricos e finalidades da Constituição (que poderiam bem ser outras daquelas enxergadas por Barroso), o outro lado esgrimia a separação de poderes.

É claro que cada ministro se esmerou para defender sua posição, mas, em conjunto, o tribunal falhou miseravelmente em resolver a questão. Quando um argumento contradizia o outro, por que não havia a tentativa de enfrentar a contradição aparente? Esta é uma crítica já é batida, alguns culpam a publicidade excessiva da TV Justiça, que inibiria a discussão entre os ministros, mas chegou-se ao ponto de Fachin e Rosa Weber citarem o mesmo trecho, do mesmo autor – Rui Barbosa, jurista e político do Império e da Primeira República – para defenderem posições opostas. Sorrisos amarelos de ambos, meia dúzia de palavras, mas, por óbvio, só um deles pode estar certo. Qual? Só Deus (e talvez Rui) sabe.

O impasse convidou à chicana. Quando ficou claro que o tribunal liberaria o indulto de Temer por 6 a 4 – Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello priorizando a separação de poderes; Roberto Barroso, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Luiz Fux priorizando o princípio da moralidade – o ministro Luiz Fux resolveu segurar a bola e pedir vista. Estrategicamente, a jogada é boa: paralisa a discussão e mantém o indulto suspenso, produzindo o resultado que minoria sabidamente derrotada deseja. Juridicamente, nem tanto: se é feio quando Gilmar Mendes dá migué, também é quando Fux o faz.

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Com o pedido de vista à mesa, os ministros favoráveis ao indulto adiantaram os votos e, de fato, alcançaram os seis votos. Aí Gilmar resolveu inovar. Propôs uma questão de ordem para que o tribunal votasse por cassar a liminar de Barroso com base na posição que teria se o julgamento acabasse. Com isso, admitiu o óbvio: ninguém estava disposto a mudar de ideia quando Fux trouxesse seu voto de volta ao plenário ao plenário. Era a tunga do migué: se o outro time age estrategicamente, por que o meu não deve agir?

Toffoli resolveu colocar o pedido de Mendes em votação. Nova reviravolta: Rosa Weber, a única que parece entender a dignidade do cargo, votou contra a proposta, por entender que o julgamento não estava, e não estava mesmo, terminado. Tentaram até constrangê-la apelando ao “princípio da colegialidade”, que a ministra tornou notório ao negar o habeas corpus de Lula, mas ela disse o óbvio: decisão do plenário só há quando o plenário decide, e Fux havia pedido vista. Como Lewandowski teve de sair logo depois de votar, o placar ficaria em 5 a 5, mesmo se Toffoli votasse a favor da proposta de Gilmar. Com isso, o presidente pediu vista da questão de ordem – e nada impede que tudo seja resolvido na próxima quarta-feira (5), se Lewandowski der o ar da graça no plenário e Toffoli resolver colocar a questão em votação.

Em resumo, o país foi acumulando, neste como em outros casos, dúvidas sem soluções que caíram no colo do STF. O tribunal tergiversou todas as oportunidades que teve de discutir e estabelecer parâmetros, além do atropelo de ocasião, para a invalidação de atos discricionários do Poder Executivo. Com isso, abrem-se as oportunidades para o papelão desta semana, em que o tribunal é arrastado para a política rasteira e desmoralizado em seu papel de Judiciário – um resultado muito mais grave que 30 corruptos eventualmente soltos, em um país cujo Congresso se renovou substancialmente, cujo presidente eleito já prometeu endurecer as regras de indulto, com um Ministério Público independente e combativo e que terá Sergio Moro com carta branca no Ministério da Justiça.

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