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A Igreja contra o bisturi: mais uma lenda urbana
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Recentemente ganhei de um amigo um livretinho sobre São Francisco de Sales, padroeiro dos jornalistas. Comecei a lê-lo, e uma passagem da vida do santo me chamou a atenção: antes mesmo de se tornar padre, com 20 e poucos anos (ou seja, perto do fim do século 16), Francisco, que na época já era um bom católico, ficou gravemente doente e pediu que, se morresse, tivesse o corpo doado a uma faculdade de Medicina. Isso me fez recordar quase que imediatamente das inúmeras vezes em que ouvi ou li sobre uma suposta proibição da Igreja à dissecação de cadáveres. Se não me engano, um dos comentaristas do Tubo chegou a mencionar essa história recentemente. Não me surpreende que gente um pouco mais qualificada também passe adiante essa história (embora o Hélio Schwartsman frequentemente cometa erros quando fala da Igreja Católica). Só que essa é apenas mais uma lenda urbana relacionando ciência e religião.

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“A aula de anatomia do Dr. Tulp”, de Rembrandt. É falso achar que essa cena seria inimaginável na Europa católica medieval.

Nesse caso, a malhação do Judas se dirige ao Papa Bonifácio VIII (pontífice entre 1294 e 1303), que teria assinado uma bula proibindo a dissecação. Uma pesquisa histórica mostra que esse afirmação é uma simplificação grosseira da situação. Vejamos o que afirma Katharine Park, no quinto ensaio do livro Galileo goes to jail and other myths about science and religion: A maioria das autoridades religiosas medievais não apenas tolerava, mas incentivava a abertura e desmembramento de corpos humanos para fins religiosos: corpos de santos eram eviscerados e embalsamados; eram divididos para produzir relíquias; os órgãos internos de homens e mulheres santos eram examinados em busca de sinais de santidade (…) tudo isso derruba a alegação de que a Igreja, como instituição, era comprometida com a integridade do corpo humano após a morte. A autora acrescenta que, até o fim do século 13, a dissecação não era praticada regularmente em lugar nenhum, independentemente de religião, exceto por um breve período entre os séculos 4.º e 3.º antes de Cristo. Gregos e romanos consideravam os cadáveres impuros; o Cristianismo rejeitou essa ideia, mas, como afirma Katherine Park, autores como Santo Agostinho viam a dissecação com reservas não porque fosse errada em si, mas porque ele considerava a fascinação em relação a um corpo morto e desmembrado como uma distração, uma curiosidade sobre coisas que não importavam para a salvação. Essa mentalidade pode ter influenciado os mil anos seguintes, mas, repetindo o que a autora – professora de História da Ciência em Harvard – afirma, como nenhuma cultura da época praticava a dissecação, fica difícil avaliar o impacto da argumentação de Santo Agostinho.

Katherine ainda acrescenta que as maiores objeções à dissecação não eram de ordem religiosa, mas cultural. Era uma grande desonra ao indivíduo e, em maior ou menor medida, à sua família. Ser exibido nu diante de uma plateia de estudantes universitários – acrescida, no fim do século 16, de notáveis locais e dignatários visitantes – era uma possibilidade profundamente embaraçosa, especialmente porque a dissecação tornava o corpo inapto para um funeral comum, em que o cadáver era transportado em um caixão aberto. Por outro lado, as famílias não tinham restrição nenhuma a autópsias, que se tornaram comuns na época, já que elas eram realizadas privadamente e o corpo era deixado intacto para o funeral. Por isso, as autoridades civis (e não as religiosas) começaram a regular a prática da dissecação, por exemplo proibindo que fossem usados os corpos de pessoas da cidade.

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Bonifácio VIII, em afresco atribuído a Giotto: o Papa foi acusado de proibir a dissecação, quando na verdade ele tinha outra coisa em mente.

Ah, mas e o Bonifácio VIII? Então, Katharine Park também menciona dois documentos da Igreja usados como alegação para a lenda urbana da proibição da dissecação. Um deles, cujo título poderia ser traduzido como A Igreja abomina o derramamento de sangue, seria datado de 1248 (antes de Bonifácio VIII, mas teria sido citado por ele) e promulgado pelo Concílio de Le Mans. Ao menos é isso que Andrew Dickson White (sempre ele, não é mesmo? Quando não é o White, é o Draper) alegava. Certamente Le Mans não foi um dos concílios ecumênicos da Igreja – na verdade, procurei na Enciclopédia Católica e não achei nenhuma referência a tal concílio. De qualquer modo, Katharine afirma que esse documento é uma farsa criada por um historiador francês no século 18. Resta a bula de 1299. Essa de fato existiu, mas não proibia a dissecação. Nicanor Letti, da UFRGS, mostra neste artigo (recomendado por um amigo leitor do Tubo) que a prática vetada pelo Papa era bem mais específica. “Referia-se a um costume, comum na época, que consistia em descarnar pela cocção os ossos dos cavaleiros e nobres que iam para a Itália com os exércitos alemães e que morriam, para remetê-los para a pátria a fim de serem enterrados”, afirma. Katharine acrescenta que, embora alguns anatomistas tenham visto na bula uma proibição mais ampla, não era isso que o texto realmente dizia, e muitos anatomistas seguiram suas pesquisas normalmente. O artigo de Letti ainda elenca uma série de episódios de dissecação pós-Bonifácio VIII, sem que os responsáveis tivessem tido qualquer problema por causa disso. É sintomático o fato, narrado por Letti, de que em 1556 o rei espanhol Carlos V perguntou à Inquisição se era possível dissecar e a resposta foi favorável (o episódio envolvendo São Francisco de Sales é posterior à avaliação inquisitorial).

Concluindo, o que temos aqui é mais uma lenda urbana envolvendo uma farsa do século 18, um documento da Igreja autêntico, mas mal interpretado, e a má vontade de um autor do século 19 que não via problema nenhum em torcer a verdade para que ela se adaptasse a seu paradigma de conflito entre ciência e fé. Se chega a surpreender que essa lenda tenha sobrevivido firme e forte até hoje, só posso encontrar explicação na máxima goebbeliana de que uma mentira repetida mil vezes se torna verdade.

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O Tubo de Ensaio é um dos três finalistas do prêmio Top Blog 2010 na categoria “blogs profissionais/religião”, pelo júri popular. Também são finalistas o Ancoradouro, de Fortaleza, e o blog da Ana Néri (que conheci pessoalmente quando estive no programa do professor Felipe Aquino). Queria agradecer a todos que votaram no Tubo e aos que fizeram campanha para convencer outros a votar. Na semana que vem sai a lista dos finalistas pelo júri acadêmico.

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