O canal de tevê por assinatura +Globosat está exibindo a série espanhola Isabel, rainha de Castela, produzida entre 2012 e 2014. Como o nome indica, trata-se de uma biografia romanceada da rainha Isabel, em cujo reinado se concluiu a Reconquista, a guerra contra os mouros que ocupavam a Península Ibérica. Vi alguns episódios da segunda temporada, que começa com a coroação da rainha e termina com a conquista de Granada, e achei a produção bem interessante.
No episódio 10 dessa segunda temporada, entra em cena o genovês Cristóvão Colombo. Depois de ter sua ideia de atingir a Ásia navegando sempre para o oeste rejeitada pelo rei de Portugal, Colombo procurou a corte castelhana. Na série, ele tenta justificar seu projeto usando cartas de navegação falsificadas, sendo desmascarado pelo frei Fernando de Talavera, confessor e conselheiro da rainha Isabel. Apesar disso, a rainha não descarta a possibilidade de Colombo estar certo e pede ao frade que convoque um conselho de sábios para discutir o tema.
Mas, antes que isso ocorra, há um diálogo interessante. Uma das mulheres próximas a Isabel na corte pergunta à rainha como a Terra poderia ser redonda. “Ela é plana como 2 e 2 são 4”, diz, questionando como as pessoas que estariam no hemisfério oposto não cairiam (no caso, “cairiam para cima”, desgarrando-se do chão). Nas cenas seguintes, frei Fernando comunica a Colombo os resultados das análises dos sábios, que se opõem à viagem alegando que o diâmetro da Terra é muito maior que o estimado por Colombo. Aqui, em nenhum momento se duvida da esfericidade do planeta; o que está em jogo é o seu tamanho (e, de fato, a distância real entre a Europa e a Ásia é de três a quatro vezes maior que a estimada por Colombo). No fim do episódio, Isabel procura Colombo, que está para partir em busca de financiamento em outros reinos, e lhe diz que bancará seu projeto assim que termine a guerra contra os mouros. No episódio 12, Colombo é alertado da dimensão de seus erros de cálculo e, no episódio 13, que encerra a segunda temporada, o navegador parte para sua viagem.
O pequeno diálogo sobre a Terra plana mostra como ainda persiste uma mitologia antirreligiosa criada no século 17 e propagada principalmente pelos nossos já conhecidos John William Draper e Andrew Dickson White, mas neste caso também por Washington Irving, autor de uma biografia de Colombo publicada em 1828. Mas a realidade, atestada por historiadores e cientistas como James Hannam, Ronald Numbers e Stephen Jay Gould, é que os cristãos medievais sempre reconheceram a esfericidade da Terra. Os criadores de mitos se apoiaram em dois cristãos, Lactâncio (séculos 3.º e 4.º) e Cosmas Indicopleustes (século 6.º), que efetivamente defendiam uma Terra plana, como prova de que havia um consenso neste sentido, quando na verdade sua posição nunca passou de uma crença marginal. Nem mesmo se pode estabelecer uma espécie de oposição entre “cristãos esclarecidos” (como seriam os membros da comissão montada pelo reino de Castela), conhecedores da esfericidade da Terra, e “cristãos ignorantes” (como a ajudante de Isabel), que acreditariam numa Terra plana. Os próprios marinheiros de Colombo, que estariam neste segundo grupo, não imaginaram que estavam navegando rumo a uma “borda do planeta”, depois da qual mergulhariam numa queda sem fim. E a iconografia medieval cristã, usada muitas vezes como meio de instrução para os analfabetos da época, tem muito mais elementos que apoiam a esfericidade da Terra que o seu oposto.
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