Na verdade, esse post é direto de Curitiba mesmo; na manhã de sábado fui para Londres, onde comecei a escrever o que vai abaixo, mas a conexão do hotel deu chabu no domingo; na segunda-feira peguei o avião de volta a São Paulo, e ontem, depois de chegar a Curitiba, só deu tempo de descansar um pouco e já vir para a redação cuidar do jornal de hoje. Mas, antes tarde do que nunca, o último dia do curso do Faraday Institute for Science and Religion tratou de desafios éticos levantados pela ciência, tecnologia e, de certa forma, cultura atuais.
Ted Peters, que tinha falado no segundo dia do curso, partiu da nossa relação de duas mãos com a tecnologia (nós melhoramos a tecnologia, a tecnologia nos melhora) para analisar se é possível incrementar a imago Dei. Obviamente, antes de fazer essa indagação é preciso saber no que consiste a “imagem e semelhança” mencionada na Bíblia. Para Peters, ela está no fato de que Deus deu ao homem governo sobre a criação, não para ser seu proprietário, mas para ser um “representante responsável” de Deus. Peters, que é luterano, empresta dos gregos ortodoxos a abordagem de que existe uma visão “arcônica” da imago Dei (que olha para trás, para o que o ser humano recebeu na criação) e uma visão “epigenética”, que olha para a frente, para o que o homem deve se tornar.
Do ponto de vista “arcônico”, ser feito à imagem de Deus garante domínio sobre a criação, dignidade e a igualdade essencial de todos os seres humanos. Do ponto de vista “epigenético”, se o objetivo do homem, segundo os gregos ortodoxos, é se tornar igual a Cristo, ser feito à imagem de Deus faz do homem um colaborador da criação, aberto ao futuro. A pergunta é: a tecnologia nos leva lá?
A julgar pelos elementos que Peters trouxe, ficamos bem céticos. O que a tecnologia nos oferece são três níveis de “melhora” (emprestando uma noção de Denis Alexander): a trivial, com vacinas, lentes de contato, essas coisas; a convencional, que usa cirurgias plásticas ou até mesmo o doping dos atletas; e a trans-humana, que pretende levar o homem a um novo patamar, propondo-se a conter o envelhecimento e a dor, superar as limitações de intelecto e, num extremo, eliminar a morte natural. Além dos impasses éticos (no caso do melhoramento genético, por exemplo, há a questão de ele não ser acessível a todos), Peters recorre a santo Agostinho, para quem o problema não é de ignorância, e sim de vontade distorcida; e a Reinhold Niebuhr, que afirma que nenhuma evolução tecnológica superará o que ele chama de “ambiguidade da história”. Ou seja, podemos até ter melhores humanos, mas não sei se teremos humanos melhores.
Na única palestra conjunta do curso, o biólogo Jeff Schloss, do Westmont College, e o filósofo Michael Murray, do Franklin and Marshall College, analisaram a questão do “mal natural” no mundo, aquele que alguns ateus militantes gostam de mencionar como indício da inexistência de Deus (e alguns criacionistas gostam de mencionar como indício de que a evolução é falsa). A primeira coisa que eles deixam claro é que não pretendem tratar do mal moral, que exige um agente consciente e livre.
De fato, existiu e existe muita destruição no mundo animal; o registro fóssil indica que a destruição passada foi feroz; e sabemos que a morte tem um papel importante no processo evolucionário. É disso que falamos quando usamos o termo “mal natural” (houve quem discordasse. David Lahti, por exemplo, que deu duas aulas na quarta-feira, discorda que tudo isso seja um mal; para ele, é simplesmente assim que funciona; assumir que se trata de um mal seria fazer um juízo moral que a natureza não oferece). No entanto, Schloss afirma que a evolução vai muito além disso porque as interações entre as espécies são muito ricas, e que na verdade não existe desperdício porque toda a biomassa é aproveitada. Nem sempre é preciso haver competição para haver seleção natural, e por isso a morte não ocupa um papel central no processo (importante, sim; mas central, não). Na verdade, dependendo do ângulo que vemos, o paradoxo não seria a “maldade” da natureza, e sim sua “bondade”.
Murray acrescenta que existem quatro explicações para o “mal natural” que ele considera fracas: a de que a culpa foi do Pecado Original (porque um universo que fosse totalmente dependesse de um único evento seria frágil demais); a de que se trata de processos físicos livres (porque isso seria antropomorfizar a natureza, atribuindo-lhe uma liberdade que não tem); a de que Deus já sabia que o homem pecaria e por isso já criou um universo selvagem (o que faria de Deus o “autor do mal”); e o que “a culpa é da evolução” (que apenas joga o problema um nível abaixo em relação ao terceiro argumento). Mas confesso que as alternativas que Murray propõe não me pareceram tão atrativas. Uma passa por um neocartesianismo que implica em uma “consciência animal”. A outra é chamada de embodied intentionality (prefiro não tentar traduzir) e afirma que a dor permite “atos de significância moral”, um certo desenvolvimento de características como o cuidado dos animais em relação à prole. Enfim, comprei o livro do Murray e vou ler para entender melhor.
O neonatologista John Wyatt, professor do University College of London, tratou das questões envolvendo o início e o fim da vida. Ele identificou duas tendências no mundo ocidental atual. Primeiro, o avanço das tecnologias de pré-natal transformou a gravidez: de um período de antecipação e expectativa, virou um período de medo e ansiedade. Claro que todo mundo quer um filho saudável, mas há algo suspeito quando tanta gente opta por um exame (a amniocentese) que causa a morte de quatro bebês saudáveis para cada feto identificado com uma doença (se não me engano, os dados se referem à Inglaterra). Já o debate sobre eutanásia sofreu uma outra transformação nos últimos 50 anos, pois começou em torno da legalização, passou para a qustão da dor (em resumo, para matar a dor, mata-se o paciente), e agora gira em torno do direito à escolha individual, a aversão a “ficar dependente de outros”. E aí já aparecem sugestões como a de uma baronesa britânica para quem os portadores de demência têm a “obrigação de morrer” para não serem um peso para a família e para o sistema de saúde pública britânico…
Wyatt apresentou as ideias de Peter Singer, para quem é a consciência de si mesmo que garante o direito à vida. Se você não sabe que existe, não tem esse direito. Por esse raciocínio, um chimpanzé saudável tem mais direitos que um recém-nascido ou um idoso com alguma doença degenerativa que afete seu raciocínio. O curioso é que mesmo quem vê sentido nas propostas de Singer não gostaria de internar um parente com demência em um hospital que fosse dirigido por ele, brinca o médico, mencionando conversas que tem com outras pessoas sobre o assunto. Sem falar que essa noção tem sérias consequências sociais, criando indivíduos de segunda classe, sem direitos. A dependência dos demais, argumenta Wyatt, é natural ao ser humano; todos somos mais ou menos dependentes, de um ou outro jeito. Por isso, diz, depender de outros não deveria fazer ninguém se sentir diminuído.
Por fim, Wyatt abordou a questão do início da vida. Mostrou uma série de imagens, desde embriões com poucas células até fetos com alguns ou vários meses de vida, e perguntou: “supondo que essas imagens fossem a do seu desenvolvimento, você apontaria para alguma delas e diria ‘esse não sou eu’?”. Na descrição de Wyatt, o embrião está em um processo de “se tornar o que já é”. Não é um mero amontoado de células, ainda não é um fato, mas já é um indivíduo humano.
A última palestra do curso foi a do reverendo Dave Bookless, do grupo cristão A Rocha (assim mesmo, em português, pois o grupo nasceu em Portugal, com uma iniciativa de conservação ambiental). O tema, “cuidando da criação de Deus”, reflete o desafio ético dos crentes na preservação do planeta. Na introdução, Bookless citou o que ele chama de vírus “afluenza”: o mundo parece ter muito, mas não para todos. Se toda a população do planeta tivesse o mesmo padrão de vida dos britânicos, seriam necessárias três Terras para fornecer os recursos necessários. Enquanto em alguns países o problema é o crescimento desordenado, em outros a questão é o consumo desordenado, aponta.
Segundo Bookless, há quatro maneiras de os cristãos enxergarem o engajamento ambiental: como algo perigoso (uma espécie de instrumento da Nova Era), como irrelevante (afinal, o que importa são as almas), como acessório (um hobby) ou como integral (parte da missão cristã). Ele argumenta que a visão correta é a última. “Se você é cristão, tem de cuidar da criação assim como tem de rezar, ler a Bíblia e ir à igreja”, diz, condenando tanto uma religião individualista quanto um dualismo exagerado que não vê nenhuma relevância na matéria. Bookless diz que o texto original grego de João 3,16 usa a palavra “cosmos” (alguém pode confirmar?), ou seja, Deus ama a criação toda, o que está refletido em vários outros trechos bíblicos sobre a harmonia entre Deus, a criação e a humanidade; harmonia esta que foi restaurada e será restaurada no fim dos tempos.
O pastor finalizou sua apresentação mostrando uma série de iniciativas ambientais de A Rocha, pautadas, segundo ele, não por um ambientalismo exacerbado do tipo “o que interessa é salvar os bichos, os humanos que se explodam”, nem por um desprezo em relação aos animais em nome do progresso humano, e ainda mencionou a campanha ecumênica Time for Creation, que unirá cristãos da Inglaterra e Irlanda em torno da causa ambiental de 1.º de setembro (início do ano litúrgico ortodoxo) até 4 de outubro (festa de são Francisco de Assis). Na seção de perguntas e respostas, um questionamento interessante: no começo do curso, havíamos ouvido que muitos cristãos que negam a evolução também são céticos em relação ao aquecimento global. Bookless vê nessa tendência uma desconfiança de certos grupos cristãos em relação à ciência como um todo, um problema que, obviamente, é preciso resolver o quanto antes.
Enfim, passar essa semana em Cambridge foi uma experiência fascinante, e certamente foi um privilégio poder discutir temas de ciência e fé com gente do mundo inteiro, seja nas aulas, seja em torno de um pint de cerveja em algum pub à noite. Espero ter a chance de retornar nos próximos anos!
Aviso: o blogueiro viajou para a Inglaterra graças a uma bolsa concedida pelo Instituto Faraday.
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