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“É a ciência, estúpido!”

De volta do recesso de Natal (já estou liberando os comentários mais recentes), queria publicar aqui uma resenha que escrevi para a edição 5 da revista Dicta&Contradicta. Como já foi lançada a edição 6, o conteúdo completo da revista anterior se torna público (embora ainda não tenha saído no site da revista), e com isso posso dividir o meu texto com aqueles que já não tiveram a oportunidade de lê-lo na Dicta 5.

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No meio da década de 90, Carl Sagan lamentava, nos capítulos finais de O mundo assombrado pelos demônios, que o incentivo à ciência nos Estados Unidos estava em queda livre: o destaque nos os veículos de comunicação era pífio, e a falta de estímulo nas escolas era generalizada, com direito à ridicularização daqueles estudantes que demonstrassem um pouco mais de interesse no assunto (fico imaginando o que Sagan pensaria se conhecesse a realidade brasileira). O astrônomo antecipava que, naquele ritmo, os Estados Unidos deixariam de estar na vanguarda científica em algumas décadas. Quase 15 anos depois, Chris Mooney e Sheril Kirshenbaum se propõem a continuar onde Sagan havia parado. Em Unscientific America, eles mostram que a situação descrita pelo falecido autor de Cosmos não mudou, mas oferecem sua versão para as causas e possíveis soluções.

A proposta da dupla é simples: enquanto todos ainda se espantam com pesquisas segundo as quais apenas uma pequena parcela da população sabe conceitos básicos de Física ou Química, poucos percebem que o maior problema é a falta de conexão entre a ciência e o resto da sociedade. Obviamente seria melhor que 3 em cada 4 pessoas soubessem que um elétron é menor que um átomo, mas ter um povo analfabeto cientificamente não é tão ruim quanto ter um povo que desconhece ou desconsidera a importância da ciência. O que está sumindo é aquela noção do sujeito que mora na casa de pau-a-pique e não sabe ler nem escrever, mas faz questão de mandar o filho à escola porque sabe que a educação é importante. Mooney e Kirshenbaum usam os exemplos da revolta popular com o “rebaixamento” de Plutão e a paranoia criada em torno ao Grande Colisor de Hádrons para mostrar que o relacionamento do norte-americano com a ciência é igual à relação do brasileiro com seus atletas olímpicos: passamos quatro anos sem ter noção do que eles andam fazendo. Então, na cerimônia de abertura ficamos sabendo que um é campeão mundial, e que outro lidera o ranking de sua modalidade, mas quando voltam para casa sem medalhas, ou com um mero bronze, apontamos o dedo e dizemos que “amarelaram”.

Obviamente nem sempre foi assim. Numa introdução histórica, os autores contam a ascensão e queda do prestígio dos cientistas nos Estados Unidos. No pós-Segunda Guerra Mundial, os homens de jaleco eram astros. A União Soviética botou o Sputnik no espaço e a corrida espacial foi o auge da excitação popular (e em Washington) sobre o trabalho científico. Mas tudo veio ladeira abaixo quando a geração paz-e-amor entrou em cena e começou a questionar a “ciência má”, que destruía o meio ambiente e visava o lucro; e quando a ciência “pura e simples” passou a ser questionada em nome do pragmatismo segundo o qual a pesquisa devia “servir para alguma coisa”. E então, nos anos 80, surgiu o fenômeno Carl Sagan. Seria a última oportunidade para a ciência recuperar seu prestígio, mas a chance foi pelo ralo não só porque o governo Reagan lhe era hostil, mas porque os próprios cientistas lhe deram as costas, graças a um misto de desprezo e inveja.

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Para Mooney e Kirshenbaum, a ciência perdeu contato com a sociedade em quatro aspectos importantes.

Os capítulos que descrevem as quatro pontes destruídas entre a ciência e a sociedade são o coração do livro. Mooney e Kirshenbaum mostram, por exemplo, como o fato de ciência e política viverem de realidades completamente diferentes distanciou esses dois mundos – o cientista busca a verdade sobre o mundo e o homem, e o político depende daquilo que pode não ser necessariamente verdadeiro, mas é popular. Enquanto isso, jornais e emissoras de televisão dedicam cada vez menos espaço à ciência, apesar dos tempos interessantes em que vivemos, com avanços na biotecnologia e na neurociência, e as respostas urgentes exigidas por crises como a das mudanças climáticas. Mas, enquanto o jornalismo vive de episódios e resultados, boa parte do processo científico é monótono – e isso não é notícia. Acrescente-se o dogma jornalístico da “imparcialidade” e temos no noticiário, por exemplo, uma minoria de cientistas que nega a relação entre o vírus HIV e a Aids. O que deveria ser uma ajuda na procura do jornalista pela verdade virou muleta de jornalista preguiçoso: basta dar “os dois lados”, e o leitor que se vire para saber quem tem razão. Já o mundo do entretenimento perdeu contato com a ciência de diversas maneiras: no modo como cientistas são retratados (normalmente como doidos, nerds ou arrogantes), na ausência completa de verossimilhança científica – implicar com som e fogo no espaço em Guerra nas Estrelas é bobagem, mas é legítimo apontar as falhas grosseiras de O dia depois de amanhã – ou na noção de que consultores científicos em filmes só servem como estraga-prazeres.

O trecho mais polêmico de Unscientific America, no entanto, é o capítulo sobre o suposto antagonismo entre ciência e religião. Mooney e Kirshenbaum botaram o dedo na ferida ao mostrar o desserviço que os sumos-sacerdotes do Novo Ateísmo, a maioria deles cientistas, prestam à ciência quando forçam as pessoas a escolher entre sua fé e a adesão às descobertas científicas. Afinal, entre ser ignorante cientificamente e arriscar a vida eterna, a maioria das pessoas religiosas preferirá a ignorância. Do outro lado do oceano, os ingleses do Theos Institute descobriram a mesma coisa: Richard Dawkins tanto insistiu na ligação entre evolução e ateísmo que os britânicos acreditaram. Resultado: aumentou o número de criacionistas. Após a publicação de Unscientific America, blogueiros como o cientista PZ Myers não economizaram nos ataques. “Acomodacionista” (aquele que defende a convivência entre ciência e fé) virou o termo – ou o insulto, dependendo do ponto de vista – da moda, aplicado até aos não religiosos, caso dos próprios Mooney e Kirshenbaum, ou do agnóstico Michael Shermer.

Os autores dizem que, apesar de fazer esse diagnóstico da realidade norte-americana, não pretendiam sair apontando o dedo e buscando culpados. Mas, pela própria natureza do trabalho, isso é impossível, e Mooney e Kirshenbaum parecem muito à vontade para demonizar George W. Bush e o Partido Republicano como um todo; eles não perdem uma chance para mencionar uma “guerra à ciência” travada pelo ex-presidente. Os cientistas, no entanto, não escapam: eles se deixam levar pela hýbris, acreditando que a ciência é capaz de explicar tudo; se trancam nos laboratórios, pensando que se sujariam ao lidar com políticos; se regozijam com a complexidade de seu trabalho, criticando quem se disponha a traduzi-lo para facilitar o entendimento do leitor comum; e, claro, botam a culpa em todos os outros, menos neles próprios. A solução, aponta a dupla, não está em formar mais cientistas, pelo menos não do modo como eles têm sido formados. A nova demanda é por cientistas que saibam transitar nesses mundos com os quais a ciência perdeu contato.

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Quem quiser conferir mais resenhas de livros pode clicar no link “Para sua biblioteca”, logo abaixo do cabeçalho do blog.

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