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Tubo de Ensaio

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“O Sinal” apresenta um Sudário com mil e uma utilidades

Quando o primeiro parágrafo do primeiro capítulo de um livro traz um samba do crioulo doido como “no ano 325, depois que o imperador Constantino adotou o cristianismo como religião oficial do Estado” (e repete o erro na cronologia final), aparece a tentação de largar por ali mesmo. Ainda mais quando é algo escrito por um historiador – só para deixar claro: quem fez do Cristianismo religião oficial do Império Romano foi Teodósio, só que em 380. Constantino apenas aboliu as perseguições aos cristãos, mas foi em 313. Como é que 325 apareceu na história? Provavelmente por ser o ano do Concílio de Niceia. Mas O Sinal (Paralela, 2012, 477 p.; meu exemplar foi cortesia da editora) é aquele livro sobre o Santo Sudário que apareceu na capa da Veja. Relevei a salada inicial para ver o que o historiador da arte Thomas de Wesselow tinha a dizer.

Vou passar rapidamente pela primeira e segunda partes do livro. No começo, o autor tenta convencer o leitor de que a noção de uma ressurreição física de Cristo já seria algo quase minoritário entre os cristãos (p. 20-22) e dá uma breve pincelada sobre a história do Sudário. Depois, o autor explica como os judeus entendiam a ressurreição (o que, convenhamos, é interessante como panorama histórico, mas se torna praticamente irrelevante caso a ressurreição de Cristo tenha sido um evento totalmente diferente do entendimento da época) e arrisca sua interpretação dos textos de são Paulo sobre o tema. Na esteira do apóstolo, Wesselow considera a ressurreição o fato central para o surgimento do Cristianismo, e nesse sentido nega as teorias de que a Igreja surgiu aos poucos, sem um evento catalisador (p. 21). Mas o historiador diz que essa ressurreição não ocorreu da maneira como estamos acostumados a vê-la. É aí que entra o Sudário.

A Parte III do livro (p. 107-203) é a que nos interessa, do ponto de vista da intersecção entre ciência e fé. Wesselow faz uma extensa recapitulação de todas as pesquisas científicas sobre o Sudário, desde a famosa fotografia de Secondo Pia até as tentativas de replicar o pano. O capítulo 9, por exemplo, é dedicado ao estudo do linho, explicando o que há de tão sensacional em características como a tridimensionalidade da imagem. Algumas páginas são dedicadas à questão das manchas no pano – são sangue mesmo ou algum outro pigmento? Wesselow mostra que as pesquisas indicam a existência de sangue (a controvérsia entre Heller e Adler, de um lado, e McCrone, de outro, é resumida nas páginas 148 a 150). Aliás, na questão das manchas Wesselow dá uma contribuição interessante, como historiador da arte, ao lembrar que não existe absolutamente nada na Idade Média “pintado com sangue” (e nem faria sentido, já que naquela época não havia testes que pudessem “desmascarar” o artista; um pintor medieval que desejasse forjar um Sudário teria usado tinta mesmo, e não sangue). O mesmo capítulo ainda trata das pesquisas sobre o tecido, que, por seu tipo de costura, o colocam como produzido na Antiguidade, e não na Idade Média. E cita um estudo de Ray Rogers, que, analisando as concentrações de vanilina no pano, concluiu que ele jamais poderia ter a idade que o exame de carbono-14 atribuiu ao Sudário – na verdade, é bem mais antigo (p. 126).

O capítulo 10 descreve os padrões das manchas de sangue, comparando-as com o que conhecemos hoje a respeito de instrumentos romanos de tortura e explicando o que cada mancha evidencia sobre a morte do homem do Sudário. Novamente o fato de Wesselow ser um historiador da arte ajuda, pois ele mostra como a iconografia medieval oferece visões bem diferentes da crucifixão em relação ao que se observa no Sudário; não apenas na velha discussão “pregos nas mãos ou nos pulsos”, mas até em relação ao fluxo do sangue nos braços de Cristo, oferecendo novos argumentos contra a hipótese de falsificação medieval. Os costumes funerários dos judeus, descritos pelo autor, também ajudam a entender a falta de sangue em algumas regiões do pano. O capítulo seguinte trata da imagem do homem do Sudário. Wesselow conclui que nenhum artista medieval poderia ter feito a imagem, porque esse não era nem de longe o padrão usado na época para representar Cristo. Sobram as teorias de formação da imagem por outros meios; é aqui que Wesselow descreve algumas tentativas recentes de copiar o Sudário e onde elas falham, tanto por omitir características do Sudário quanto por exigir tecnologia ou conhecimento inexistentes na Idade Média (confira uma lista das réplicas recentes e em que elas batem ou não com o Sudário). A partir da imagem, Wesselow faz uma descrição de como estaria disposto o corpo do homem sepultado ao ser coberto pelo pano.

No capítulo 12, Wesselow entra em terreno desconfortável para os céticos. Aparentemente, o Sudário realmente é o pano que envolveu Jesus. Mas ainda falta explicar como a imagem teria se formado. Aqui vemos as teorias mais fantásticas, como as que envolvem radiação. Mas o autor endossa uma hipótese bem mais simples, a da vaporografia, sugerida por um dos primeiros estudiosos do Sudário, Paul Vignon, descartada pelo Sturp e retomada por um dos membros do time, Ray Rogers (p. 167-174). Para Rogers (e Anna Arnoldi, coautora de um artigo científico publicado em 2003), a imagem do pano surgiu graças a uma reação de Maillardentre aminoácidos emanados do cadáver de Cristo e carboidratos presentes no linho. O próprio Rogers, no entanto, ressaltou que seriam necessários mais testes para comprovar a hipótese.

A datação por carbono-14 é o tema de todo o capítulo 13. O autor argumenta que, por mais que céticos usem o exame como “ponto final, e não se fala mais nisso”, a prova definitiva de que o Sudário é falso, é preciso andar bem devagar com o andor porque nesse caso o santo definitivamente é de barro, e bem frágil. Wesselow começa dizendo que, sim, datações por carbono-14 podem errar, e dá exemplos bem bizarros (p. 177), como o do mamute do ano 3600 a.C. Além disso, há o constante problema da contaminação. A seguir, o livro narra como ocorreu o exame no Sudário: as negociações, a extração das amostras, todas as quebras do Protocolo de Turim (algumas delas, inclusive, comprometem seriamente a confiabilidade do exame – querem um exemplo? Por meia hora, as amostras não ficaram sob a vista de ninguém além do cardeal Ballestrero, arcebispo de Turim, e de Michael Tite, do Museu Britânico. Não dá pra desconfiar?), e o anúncio dos resultados, que Wesselow rejeita. Para ele, há três possibilidades: contaminação, remendo – a tese da “tecelagem francesa” de Sue Benford e Joe Marino (p. 184-185), que comentei quando saiu o livro – ou fraude. O fato é que a data apontada pelo carbono-14 não bate com nenhuma das outras evidências, científicas ou históricas, sobre o Sudário. Wesselow diz que isso acontece com alguma frequência e, nesses casos, adivinhem?, quem costuma rodar é o carbono-14.

O capítulo final da Parte III é uma recapitulação das evidências históricas (e não mais laboratoriais) da existência do Sudário antes de seu aparecimento na França, no século 14. O autor adere à hipótese de Ian Wilson de que o Sudário é o Mandylion de Edessa, pano que mostrava o rosto de Cristo e era venerado nessa cidade da Ásia Menor até ser levado a Constantinopla, do qual teria saído durante o saque da Quarta Cruzada, em 1204, quando foi parar na França. Aqui, Wesselow invoca, em favor do Sudário, uma imagem do Códice Pray (1192-1195) em que o desenho do pano que envolve Cristo é absurdamente fiel ao Sudário – inclusive com os conjuntos de furinhos de atiçador que danificaram o Sudário real. Ao lado de outras características do desenho (como furos dos pregos nos pulsos e mãos sem polegares), o desenho é uma prova poderosa da existência do Sudário antes das datas apontadas pelo carbono-14. Claro, quem aceita apenas provas obtidas em laboratório pode torcer o nariz, mas qual é a chance de que um desenho do século 12 descrevesse um objeto saído apenas da imaginação do artista, quando toda a arte medieval apontava para outra direção? Aliás, Wesselow aproveita a ocasião para mostrar por que a alegação do bispo Pierre d’Arcis (aquele que disse que seu antecessor tinha conhecido o “autor do Sudário”) não merece confiança.

Até aí, vai tudo bem. Os problemas começam depois que Wesselow admite que o Sudário é não apenas uma mortalha que cobriu um judeu morto no século 1.º, mas o pano fúnebre do próprio Jesus Cristo. Como entender, então, a ressurreição? Agnóstico, Wesselow descarta de imediato a hipótese de que Jesus tenha fisicamente ressurgido dos mortos (porque vai contra suas convicções mais profundas, como admite na página 208); mas a alternativa que ele apresenta, convenhamos, é de lascar, e parte do princípio de que o destino do corpo morto de Cristo é irrelevante (p. 237).

Vejamos o que aconteceu na manhã da Páscoa, segundo Wesselow (p. 261): as mulheres foram à tumba, rolaram a pedra e encontraram tudo do jeito como haviam deixado na Sexta-Feira Santa – inclusive o corpo morto de Jesus. Para ungir o corpo (coisa que não tiveram tempo de fazer logo após a morte na cruz), tiraram a parte de cima do Sudário e viram, no pano, a imagem do Cristo de frente. Largaram tudo lá e foram procurar os apóstolos, que aí, sim, teriam recolhido e levado o Sudário (e deixado Jesus lá no sepulcro). E a coisa só piora. Na visão de Wesselow, apesar de os seguidores de Jesus o terem visto ressuscitar pelo menos três pessoas (trazendo-as fisicamente da morte para a vida), eles não se incomodam em largar o corpo do seu mestre apodrecendo na tumba enquanto, no melhor estilo animista, veem e festejam o pano como o próprio Jesus Ressuscitado – Wesselow se limita a dizer que o caso de Jesus é “diferente” da ressurreição de Lázaro, por exemplo, mas sua argumentação é pouco convincente (só para deixar claro: sim, é diferente dos casos de Lázaro, do jovem de Naim e da filha de Jairo, mas não como Wesselow defende; uma explicação simples, mas direta do que consiste o “corpo glorificado” de Cristo está no Catecismo da Igreja Católica; confiram os pontos 640 a 646, especialmente o 645).

O autor passa a analisar os relatos do Novo Testamento segundo esse paradigma. Os dois anjos que aparecem em alguns textos anunciando a ressurreição às mulheres? São os dois lados (frente e verso) do Sudário. As ocasiões em que os apóstolos interagem com Jesus (nem todas, como veremos)? São, na verdade, encontros com o pano sagrado. A conversão de são Paulo? Foi motivada por uma visão do Sudário em Damasco (Wesselow diz que o pano era irresistível o suficiente para transformar um perseguidor feroz de cristãos em apóstolo, mas pelo jeito não foi assim tão avassalador para o próprio autor, que viu o pano em Turim, mas segue agnóstico). A “aparição a 500 pessoas” descrita por são Paulo? Uma exibição pública do Sudário no Templo, em Jerusalém. A regra não declarada de Wesselow é: o relato X pode ser torcido o suficiente para encaixar na sua teoria? Então tudo bem. O relato Y não se encaixa? Então é descartado sem cerimônia, como ficção acrescentada posteriormente nos textos sagrados, afirma. A tumba vazia, os episódios dos discípulos de Emaús, de Jesus comendo peixe, da ascensão na montanha, de Paulo caindo do cavalo na estrada, nada disso ocorreu, diz o historiador. Com seu critério, Wesselow introduz uma esquizofrenia séria nos Evangelhos: literalmente ao lado de versículos historicamente precisos (os que se encaixam na sua teoria) há invenções bizarras (os episódios não explicáveis pela tese do Sudário como o próprio ressuscitado).

Imagem do corpo da matéria Nada de anjos rolando pedras ou anunciando a Ressurreição, diz Wesselow; a realidade é feita de pano. (Reprodução autorizada / www.thebricktestament.com)

Como dizem no Facebook, “véi na boa”, é preciso ter mais fé para acreditar que as coisas ocorreram como Wesselow as descreve do que para crer numa ressurreição física de Cristo.

Logo de cara há duas dificuldades básicas com essa “abordagem Bombril” do Sudário. A primeira é científica. O sangue coagulado, como sabemos, gruda no pano. Se as mulheres tivessem removido o Sudário com o corpo de Jesus ainda dentro dele, o “desgrudamento” alteraria o tecido. “[Os cientistas] reconhecem também inequivocamente uma das maiores maravilhas do Sudário: o cadáver, descolando-se dele, deixou-o intacto, sem a mínima alteração de suas fibras, sem arrancá-las nem modificar os traços de sangue entre o corpo e o tecido. O que é impossível acontecer com um corpo comum, sujeito às leis comuns da natureza. Um cadáver coberto de chagas não poderia jamais ser retirado do pano que o continha sem alterar o pano e os sinais nele deixados pelo sangue e pelas feridas”, afirmou Arnaud-Aaron Upinsky (que escreveu sobre o tema, mas não era membro do Sturp). Wesselow não menciona este detalhe no capítulo sobre o sangue no Sudário.

O segundo problema é histórico. Se era tão claro para os primeiros cristãos que o Jesus Ressuscitado era o Sudário, e não um ser físico, como os “segundos cristãos” passaram tão rapidamente a crer na ressurreição física de Cristo a ponto de ela aparecer até nos Evangelhos, com os relatos que Wesselow considera ficção pura? O historiador arrisca algumas respostas, que passam pela frequência menor da exposição do Sudário a partir de sua transferência para Edessa e pela repressão à Igreja em Jerusalém (p. 355). Mas uma mudança tão drástica, e em tão pouco tempo, sobre um tema fundamental para a fé cristã é improvável. A eventual destruição da Igreja em Jerusalém não explica nada. Pedro e Paulo, por exemplo, que saberiam que o ressuscitado era o Sudário, rodaram a Ásia Menor e chegaram até Roma, portanto uma suposta noção de que não havia um Jesus físico ressurgido dos mortos não estava confinada à Palestina. Wesselow ainda diz que o entendimento “físico” da ressurreição se tornou majoritário à medida que o Cristianismo se espalhava, mas para essa versão figurar nos Evangelhos isso teria ocorrido ainda durante a vida dos líderes originais da Igreja. Difícil imaginar que eles não condenariam uma tal deturpação dos fatos que eles mesmos presenciaram.

(Aliás, falando em Evangelhos, o livro todo é permeado por uma verdadeira salada sobre as identidades dos autores dos livros do Novo Testamento, quem escreveu o quê, e quando. Se o leitor quiser informações bem mais embasadas, recomendo a edição do Novo Testamento preparada pela Universidade de Navarra; existe uma versão publicada em Portugal.)

Nem todas as alegações de Wesselow são tão fantasiosas. Considero bem provável que, ao encontrar a tumba vazia, os apóstolos tenham recolhido o Sudário e feito dele um objeto de veneração. A ideia de que Saulo de Tarso tenha sido enviado a Damasco com o objetivo de destruir o Sudário (p. 328-329), embora nova para mim, também é plausível. Mas, no geral, O Sinal parece uma tentativa de desacreditar a ressurreição de Cristo, só que da maneira mais inusitada que já vi – com uma defesa sólida da autenticidade do Santo Sudário. É significativo que o último parágrafo do livro cite o teólogo protestante Rudolf Bultmann, um dos mais conhecidos entre os que negam a ressurreição. No fim, as cerca de 100 páginas da Parte III realmente valem a pena. Mas o resto? Só para quem curte ficção.

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