Estava revisando os comentários no blog quando deparei com um pedido do meu xará Marcio Monteiro. Em abril deste ano, ele comentou num dos posts do Tubo:
“Recentemente, no programa do Jô Soares, que entrevistava o Pe. Reginaldo, o Jô aproveitou para, ao lhe perguntar, tirar um sarro da igreja, dizendo que o Papa Pio X teria proibido, na época, o famoso médico Louis Pasteur de aplicar vacinas nas pessoas. Ou seja, querendo dizer claramente para o padre que a Igreja em que ele é sacerdote é retrógrada. O padre, por sua vez, contemporizou e não soube dar uma resposta convincente sobre tal tema, talvez por não saber deste fato, historicamente falando. Este fato realmente aconteceu?”
Primeiro, peço desculpas ao Marcio por ter demorado tanto para perceber o seu pedido. Agora, resolvendo a questão: bom, fui procurar a tal entrevista. Ocorreu em novembro de 2012, quando o padre Reginaldo estava lançando Feridas da Alma. Para assistir, basta clicar no link acima. A afirmação do Jô Soares está no minuto 5:38 do vídeo. Após o padre dizer que “a Igreja é sanitarista”, a propósito da remoção da água benta na sua paróquia por causa da epidemia de dengue e do H1N1 (uma medida da qual eu discordo por privar o fiel de um sacramental, mas vá lá), o apresentador retruca: “até certo ponto, porque Pio X, por exemplo, proibiu o uso, proibiu Louis Pasteur de ceder vacina, vacina era um anátema, era um perigo, era um pecado”. O padre Reginaldo deu uma desviada do fato histórico (provavelmente por não saber os detalhes, não o culpo) e falou da importância de colocar as coisas no seu contexto, o que é mesmo correto. Depois o Jô vai soltar mais umas besteiras sobre doutrina da Igreja, faz umas perguntas absolutamente idiotas, mas vamos aos fatos:
São Pio X (cuja festa litúrgica, aliás, foi comemorada na sexta-feira passada) não poderia ter proibido Louis Pasteur de ter aplicado vacinas em hipótese alguma, por um motivo muito simples: Pasteur morreu oito anos antes de Giuseppe Sarto ter sido eleito papa e assumido o nome de Pio X… como o Jô soltou a informação assim, sem fonte nenhuma, considerei outras hipóteses: 1. que outro papa tenha feito essa censura a Louis Pasteur; 2. que Pio X tenha feito essa censura a outros cientistas, mas não Pasteur; 3. a oposição às vacinas tenha vindo de outro papa e sido dirigida a outras pessoas. Quanto aos dois primeiros itens, não encontrei absolutamente nada. Não há controvérsias envolvendo Pio X e vacinação; e Pasteur não encontrou nenhuma resistência papal ao seu trabalho. Sobra a terceira hipótese.
E aí lembrei de uma lenda. Leão XII, papa entre 1823 e 1829, teria, sim, proibido a vacinação contra a varíola nos Estados Pontifícios em termos duríssimos, segundo os quais a varíola era uma punição divina, e por isso quem recorresse à imunização estaria afrontando o próprio Deus. Mas parece que a história não foi bem essa. Tratei desse episódio aqui no Tubo de Ensaio em janeiro de 2011; na época, a acusação vinha do livro de um jesuíta adepto da Teologia da Libertação. O que posso acrescentar ao post original de 2011 é uma informação sobre Georgina Sarah Godkin, a autora do livro de 1880 (uma biografia do rei italiano Vítor Emanuel II) que menciona o episódio da vacinação. Ela pertencia a uma corrente de historiadores britânicos que adotava uma abordagem um tanto determinista e maniqueísta, que opunha as forças do progresso e da razão às do obscurantismo. Leão XII, conservador e autoritário, era um bom alvo segundo esses padrões.
Pelo menos essa não dá para jogar nas costas de Dickson e White…
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