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"Cheguei a imaginar que o tema da evolução fosse incompatível com uma religiosidade mais fervorosa, mas estava errado."
"Cheguei a imaginar que o tema da evolução fosse incompatível com uma religiosidade mais fervorosa, mas estava errado."| Foto:

Como contei a vocês lá em setembro, a participação no workshop de ciência e religião na América Latina, em Oxford, me rendeu a possibilidade de fazer muitos contatos. Um deles foi o professor Heslley Machado Silva, que leciona no Centro Universitário de Formiga (Unifor) e na Universidade de Itaúna, em Minas Gerais. Pudemos conversar bastante sobre o ensino da evolução nas escolas, e a compatibilidade entre a evolução e a crença religiosa. A convite do blogueiro, ele escreveu o artigo que publicamos agora.

Um papo sobre religião e ensino da evolução biológica

Heslley Machado Silva

Este texto é fruto de uma reflexão construída a partir de uma conversa informal entre duas pessoas oriundas de discursos aparentemente muito distantes. Um biólogo que estuda em seu doutorado o embate entre criacionismo e evolucionismo, e um jornalista religioso interessado na mesma temática. Avalio que foi uma ótima oportunidade para repensar como é possível a convivência amistosa e produtiva entre os saberes científicos e os dogmas religiosos. Esse diálogo aconteceu em um evento sobre Ciência e Religião na América Latina, ocorrido na Universidade de Oxford.

“Cheguei a imaginar que o tema da evolução fosse incompatível com uma religiosidade mais fervorosa, mas estava errado.” (Foto: Jarrett Green/istockphoto)

Leciono Ciências e Biologia há mais de 20 anos, tendo atuado em todos os níveis de ensino: fundamental, médio e superior. Trabalhei em escolas públicas e privadas, escolas urbanas e rurais, cursinhos pré-vestibulares e atualmente leciono apenas em curso superior. Em todos esses contextos, um dos temas mais caros e, ao mesmo tempo, prazerosos para ensinar foi a evolução biológica. Essa temática suscita as reações mais diversas: alguns adoram, se entusiasmam ao ver como ela liga todos os conteúdos biológicos e como está assentada nas evidências mais sólidas; por outro lado, causa aversão em número igual de alunos, como algo que deve ser rejeitado, ignorado e, se possível, excluído da sala de aula. Revisando minha trajetória, avalio que nesse tema tive alguns dos maiores sucessos (suponho) em motivar os alunos, mas tive grupos de alunos que simplesmente disseram rejeitar aquele saber, pois era quase ofensivo às suas crenças. Cheguei a imaginar que o tema fosse incompatível com uma religiosidade mais fervorosa, mas estava errado.

Para discutir essa questão é preciso primeiro reconhecer a evolução biológica como um dos campos mais consolidados da ciência e fundamental para a compreensão da Biologia. Não sei ainda por que, mas algo de estranho acontece às vezes na educação; parece que é um pecado dizer que a evolução ocorreu. “Só podemos dizer que existem evidências”, tenho ouvido de eminentes educadores. Imaginem um virologista dizer que só há evidências dos vírus, que há 200 anos ninguém sabia da sua existência; seria possível “desdescobrir” a existência dos vírus? Ou que os dinossauros não existiram. Será que vamos descobrir que a Terra é plana ou que é o centro do universo? Que tal um professor de História dizer que só existem evidências de que a Segunda Guerra Mundial ou o Holocausto judeu aconteceram, e que talvez seja apenas um complô dos historiadores? Pois bem, não vejo nenhum problema em dizer que a evolução ocorreu, pela montanha de evidências. Imaginem os cientistas, paleontólogos e congêneres de cada canto do mundo combinando em colocar os fósseis em camadas, apenas para perturbar a humanidade. Ainda precisaríamos contactar os físicos para validar a medição pela radiação, recorrer aos geneticistas para falsificar os achados relacionados a análises do DNA, aos embriologistas, fisiologistas, etc, etc, etc.

Agora, pensem em um professor de Biologia ou Ciências que, ao ensinar a evolução, diga que não acredita naquilo, mas tem de ensinar, pois o que existem são apenas evidências, e a evolução é um elemento unificador do conhecimento biológico. Pensem nisso em um país que tem os resultados no campo da educação muito ruins, especialmente em ciência, pois isso ocorre, e com frequência. Então, para início de conversa, a evolução ocorreu e isso não implica em desqualificar qualquer religião ou ter de deixar de crer em um Deus. Não caiam na argumentação de que a Teoria da Evolução darwiniana foi superada; ela nunca esteve tão evidente e nunca a micro e a macroevolução foram tão bem comprovadas.

“Devemos evitar o ensino do criacionismo bíblico ou qualquer outro nas aulas de Ciências e Biologia não para respeitar os ateus, mas para respeitar o laicismo do Estado e a diversidade religiosa.” (Foto: Andrea Hill/istockphoto)

Quando vejo sugestões (e tentativas de implementação) sobre ensinar criacionismo nas aulas de Ciências e Biologia no Brasil, seja por iniciativa de governos ou de qualquer figura pública (até educadores, com o argumento da pluralidade, da possibilidade de escolha), fico pensando em qual seria o impacto de sugerirmos aos padres ou pastores que, ao falar sobre o livro bíblico do Gênesis, também apresentassem a teoria darwiniana. Seria certamente considerado um tremendo desrespeito à religião, mas por que o contrário não é visto dessa forma? Um aluno de um curso de Ciências Biológicas uma vez me perguntou por que ele não poderia ensinar o criacionismo nas aulas de Ciências e Biologia. Respondi-lhe que ele estaria usurpando um tempo e um espaço que não lhe pertenceriam; ele poderia fazer isso na escola dominical, no catecismo, em qualquer lugar onde as pessoas buscassem o ensino dogmático. Justo, não? Mas onde estaria a possibilidade de outras visões de mundo, e o respeito à “multiculturalidade”? Volto à pergunta inicial sobre a pregação do Gênesis bíblico: deveríamos ter essa consideração nas igrejas também? Vou além: devemos evitar o ensino do criacionismo bíblico ou qualquer outro nas aulas de Ciências e Biologia não para respeitar os ateus, mas primeiramente para respeitar o laicismo do Estado, que foi tão penoso para ser conquistado historicamente (se é que foi conquistado no Brasil). Em segundo, para respeitar a diversidade religiosa, pois imaginem alguém pertencente a uma doutrina religiosa não cristã, submetido em uma aula de Ciências e Biologia a uma visão de uma outra religião: mais um tremendo desrespeito. Se fôssemos apresentar alguma visão dogmática sobre a origem da vida, teríamos de apresentá-las todas, sem detrimento de nenhuma que pudesse compor a diversidade religiosa brasileira. Aí não teríamos mais aulas de Ciências e Biologia, ficaríamos todo o tempo falando de religião.

Considero temerária a existência de propostas que visem o ensino dogmático nas aulas de Ciências e Biologia, pois percebo a importação de um problema tipicamente do sul dos Estados Unidos, o que não torna aquela região uma referência. Talvez referência de intolerância, de atraso. Pergunto-me por que não importamos de outros países a convivência entre a ciência e a religião? Uma nota de dez libras tem a rainha (que, além de chefe de Estado, é a chefe da Igreja Anglicana) e, do outro lado, Charles Darwin. E não há drama sobre isso. A convivência deveria partir da independência dos campos e do respeito mútuo entre as partes. E essa importação encontra um terreno que potencializa o problema, pois os últimos dados do Censo brasileiro demonstraram dois movimentos em relação à religiosidade da população: o crescimento dos evangélicos, mas também daqueles que se intitulam sem religião, talvez agnósticos, ateus, mas também aqueles que acreditam em Deus, sem seguir nenhum dogma. Isso gera algo que já vivenciei em sala de aula, ao ensinar evolução biológica, quando encontrei duas reações que não desejava: de um lado, os muito religiosos, evangélicos ou católicos, os quais simplesmente diziam que não podiam ou não queriam aprender aquilo porque contrariava aquilo em que eles acreditavam; do outro lado, ateus, agnósticos e os que tinham uma religiosidade menos intensa, que viam o outro grupo como atrasado, intolerante, incapaz de entender e aceitar o conteúdo. Vejo as duas reações como muito nocivas ao processo de educação e perniciosas para os dois grupos. Aliás, acho que os dois grupos estão equivocados: uma pessoa pode entender perfeitamente como a evolução ocorreu e encontrar espaço para a convivência com o saber religioso. Além disso, ninguém deveria se considerar superior por não ter a mesma construção de conhecimento, muitas vezes calcada em uma cultura familiar, social e que traz para o indivíduo paz e satisfação pessoal. Não se deve buscar trazer a religiosidade para uma aula de Ciências ou Biologia, mas também não se deve objetivar afastá-la do aluno; deve-se apenas ensinar o tema, mostrar todas as evidências (provas) e deixar que haja a acomodação no sujeito; pelo menos é assim que vejo essa questão.

(Foto: Pictureworld/istockphoto)

“Não deixem de apreciar como foi magnífico o processo (comprovado) que trouxe todos os seres vivos, incluindo nós, até aqui.” (Foto: Pictureworld/istockphoto)

Finalizando, não deixem de apreciar como foi magnífico o processo (comprovado) que trouxe todos os seres vivos, incluindo nós, até aqui. Se é religioso, busque situar seu Deus no início, no meio, no fim da evolução, onde achar que se encaixa melhor a ciência e sua crença; pense em como seu Deus fez um trabalho formidável. Se é ateu e acredita que tudo foi um acaso, que tivemos bastante sorte para chegar até aqui, isso torna o processo evolutivo também espetacular. Enfim, a evolução ocorreu; ela nos explica uma série de questões biológicas diversas. Não devemos importar problemas e conflitos, mas buscar soluções para o ensino científico, buscando uma convivência amistosa e respeitosa entre os campos distintos.

Aviso: A viagem e a hospedagem do blogueiro em Oxford foram bancadas pela Fundação John Templeton e pela Universidade de Oxford.

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Prêmio Top Blog, votação estendida!

selotopblog_300x250Devia terminar neste sábado, dia 9, a primeira rodada de votação da edição 2013 do prêmio Top Blog, mas resolveram adiar o prazo para… 25 de janeiro de 2014! Suponho que seja pela incompetência da organização, que deixou na mão os blogueiros que usam WordPress ao inventar um selo em Java, que o WordPress recusa (este selo que vocês estão vendo ao lado foi uma gambiarra do suporte técnico do prêmio, só porque eu insisti muito. Pelo que vejo nas mídias sociais, a maioria das reclamações nem teve resposta). Em 2010 e 2011, o Tubo venceu a categoria “Religião/blogs profissionais” pelo voto popular. Em 2012, não ficamos entre os finalistas, mas o Blog Animal, também da Gazeta, venceu sua categoria pelo júri acadêmico. Para votar no Tubo, basta você clicar aqui ou no banner ao lado. Cada conta de e-mail só pode votar uma vez no mesmo blog, mas nada impede que, com uma mesma conta de e-mail, você possa votar em vários blogs de sua preferência. Da mesma forma, você pode votar no Tubo mais de uma vez se tiver duas ou mais contas de e-mail. Basta preencher, no alto da página do prêmio, seu nome e e-mail. Você receberá uma mensagem com um link para confirmar seu voto. Também é possível votar pelo Facebook.

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