Quando o astrônomo e padre jesuíta Georges Lemaître publicou um artigo propondo que o universo estava em expansão – o pontapé inicial do que viria a ser a teoria do Big Bang –, o que ele menos queria era que usassem sua tese do “átomo primordial” para fazer apologética. O seu trabalho era cosmologia pura, não teologia. Isso não impediu que o papa Pio XII, interessadíssimo em ciência e empolgado com o Big Bang, dissesse, em um discurso de 1951, que o Big Bang era a prova da existência de um Deus criador. Lemaître ficou tão alarmado que procurou o papa para avisá-lo que a teoria não tinha nenhuma implicação religiosa. Funcionou com Pio XII, pois ele não voltou ao tema, mas ainda hoje há quem pratique essa “apologética do Big Bang”. Até mesmo o papa Francisco deu uma escorregada há algum tempo, quando disse que “O Big Bang (…) não contradiz a intervenção divina, mas exige-a”. William Carroll, professor da Faculdade de Teologia da Universidade de Oxford, no Reino Unido, tem buscado esclarecer, com base na filosofia de Santo Tomás de Aquino, que não existe associação automática entre o início temporal do nosso universo e um ato divino – o que não significa, evidentemente, que não exista um criador. Eu conversei com Carroll em Santiago do Chile, no fim de setembro. Ele foi um dos principais palestrantes do congresso “O lugar da pessoa no cosmos”, organizado pelo Ian Ramsey Center da Universidade de Oxford e pela Pontifícia Universidade Católica do Chile. Confira abaixo a íntegra da entrevista publicada na edição impressa deste sábado da Gazeta do Povo.
Se “criação” não é “começo”, então do que estamos falando quando nos referimos a “criação”?
Para Santo Tomás de Aquino, e eu concordo com sua posição, há um sentido filosófico do termo, dentro da disciplina da metafísica, que se refere à causa da existência das coisas em si, ou seja, a causa de tudo o que existe, da forma como as coisas existem. Essas realidades têm sua causa em Deus. Esse é um sentido filosófico, mas existe ainda um sentido teológico, que inclui tudo o que a filosofia afirma, mas acrescenta os dados obtidos pela revelação: entre outras coisas, que o universo criado tem um começo, que o mundo criado tem sua causa na Trindade, ou que a criação é um ato livre de amor da parte de Deus. Uma coisa que o sentido filosófico de “criação” não aborda – e Tomás de Aquino dirá que tem de ser assim – é a questão da temporalidade do mundo. Tomás diz que a razão humana, seja pela filosofia, seja pela ciência, não pode saber se o universo tem um começo ou se ele é eterno. O mais importante, para Tomás, é que essa questão sobre o mundo ser eterno ou ter um início no tempo diz respeito ao tipo de universo que Deus criou, e não tem impacto nenhum sobre o fato incontestável de o mundo ter sido criado. É nesse sentido que venho argumentando que o sentido fundamental, quando falamos em “criação”, não tem nada a ver com um início temporal – e olhe que aqui só precisamos levar em conta o significado filosófico da palavra. Nós precisamos aprender a separar a questão do “início” da questão da “criação”, ou da “origem”, do universo. Este último se refere simplesmente ao fato de o universo ter uma origem: um criador que causa a existência das coisas.
Então, o Big Bang é um início, mas não uma origem?
Talvez. Que o Big Bang é um começo, disso não há dúvida, mas pode não ser o começo. Pode ter ocorrido algo antes do Big Bang, pode ter havido uma série eterna de Big Bangs e Big Crunches… não temos como concluir que o Big Bang é um tipo de “início absoluto” do universo, o que seria uma espécie de confirmação científica da criação. A cosmologia contemporânea não nos diz nada sobre se o universo é criado ou não, pois ela nos fala de um começo que, até onde podemos saber, é apenas o começo do universo que observamos. Isso não é suficiente para concluir que o universo foi criado.
Esse foi o erro do papa Pio XII…
Sim, de início ele abraçou essa visão, que é errada, mas Pio XII não foi o único que pensou assim; ainda hoje há pessoas, como William Lane Craig, que continuam defendendo que a cosmologia do Big Bang confirma – bem, “confirma” talvez seja um termo muito forte; digamos que, para essas pessoas, o Big Bang dá base para a ideia de que o universo foi criado. É uma “apologética cosmológica”.
E o que exatamente se quer dizer quando se afirma que Deus é a “causa” do universo?
Há um engano comum que é o de enxergar Deus como um agente superpoderoso que “faz coisas”. Deus é a causa do universo de uma maneira radicalmente diferente da forma como as criaturas são causas – por exemplo, da forma como você e eu somos “causas” dessa entrevista, ou da forma como as pessoas que idealizaram e construíram esta universidade onde estamos são as “causas” dela. Estamos falando de uma relação de dependência: o universo depende de um criador para existir. Para entender isso precisamos compreender bem a transcendência divina, o que significa, para Deus, ser uma “causa transcendente”. Ele não é transcendente no sentido de estar “fora” ou “além” do universo criado, mas é transcendente no sentido de ser incriado. Deus faz existir todas as coisas, que são diferentes dEle mesmo e que dependem da Sua causalidade. De certa forma, Deus é mais íntimo do mundo, mais íntimo das criaturas do que as criaturas podem ser íntimas delas mesmas. É uma forma estranha de dizer, mas Deus é “transcendentalmente imanente” no mundo. Costumamos pensar que só se pode ser transcendente ou imanente, mas Tomás nega esse contraste. Sua noção de transcendência divina inclui uma dose radical de imanência. Sei que é complicado de entender, em parte porque é difícil para nós, criaturas, ter noção do que seria uma causa incriada.
Em que medida isso é diferente do “Deus relojoeiro” que muitos defendem, uma divindade que criou o universo e depois “se retira”, deixando que as leis da natureza se encarreguem do resto?
O “Deus relojoeiro” é um designer, um organizador. Ele trabalha, de certa forma, com o que já existe, reorganizando as coisas e movendo-as daqui para lá e vice-versa. O “Deus relojoeiro” não é a causa da existência; é um tremendo artesão, mas não é o criador de que Tomás de Aquino fala.
Existe a ideia de que Deus não só cria, mas “sustenta” o universo com Sua vontade.
Tomás de Aquino negaria essa distinção entre “criação” e “manutenção”. Ele não diz que Deus cria e depois, de certa forma, sustenta o universo. Essa é uma visão que São Boaventura e vários outros defendem. Fala-se de creatio ex nihilo (“criação a partir do nada”) e creatio continua (“criação contínua”). Para Tomás de Aquino, o ato criador é tudo o que Deus faz: Ele faz as coisas existirem de uma forma que elas tenham sua própria autonomia. É uma “autonomia causada”, mas que não tende à autodestruição e por isso exigiria de Deus um ato especial chamado de “conservação”. Isso é importante: quando Tomás diz que Deus não precisa conservar nada, é porque o ato criador já é suficiente pois, para Tomás, isso inclui a ideia de que a ordem natural tem uma integridade própria, uma tendência inata a se manter existindo, seus próprios “poderes causais”, entendidos como o poder de ser a causa de outras coisas.
Veja como isso é importante para o desenvolvimento da ciência: é uma visão da natureza que defende o papel das ciências naturais como investigadoras e descobridoras das relações de causa e efeito existentes no mundo natural, pois a ordem criada tem essa autonomia, tem os seus princípios, seus poderes causais – poderes esses criados, no entanto, por Deus. Parece estranho: como algo pode ser, ao mesmo tempo, próprio e criado por Deus? Acontece que o modo como Deus é a causa do universo é muito diferente de qualquer outra relação de causa e efeito.
Então, os cientistas andam usando termos da filosofia com sentidos diferentes dos originais?
Sim, e isso é parte do problema. Veja o que acontece com a noção de “causa”. Nós nos acostumamos a pensar em uma sequência temporal, a causa vem sempre antes da consequência. Para Tomás de Aquino, “causa”, em seu significado mais fundamental, como já tínhamos dito, implica em uma dependência na ordem do ser. Uma causa o é de forma mais autêntica quando produz seu efeito. E o efeito o é de forma mais autêntica quando está sendo produzido pela causa. Causa e efeito não são coisas ou eventos separados, mas duas faces de uma única realidade, vistos de ângulos diferentes.
Outro caso gritante é o uso do termo “nada”. Quando cientistas contemporâneos falam de “tunelamento quântico a partir do nada”, ou que podemos explicar o surgimento do tempo e do espaço a partir de um “nada primordial”, o “nada” de que eles falam é, na realidade, alguma coisa. Pode não ser nada como o nosso universo atual, mas é um significado radicalmente diferente de “nada” em comparação com a “criação a partir do nada” de que tratam a filosofia ou a teologia. A creatio ex nihilo significa que Deus não usa nada pré-existente para ser a causa de tudo o que existe. Não é que Deus trabalhe com um “nada” e transforme esse nada em algo. A criação a partir do nada significa que Deus, e apenas Ele, é a causa de tudo o que há.
Quando Stephen Hawking vai ao Discovery Channel e diz que a lei da gravidade permite a criação a partir do nada, ou quando Lawrence Krauss escreve um livro chamado Um universo que veio do nada, ambos dispensando a necessidade de um criador, qual é o erro deles?
É o de enxergar a criação como um tipo de mudança peculiar, mudança daquilo que eles chamam de “nada” para algo. Eles mesmos assumem que não estão usando a palavra da mesma forma como os filósofos e teólogos a usam, e fazem isso tanto com o termo “nada” quanto com “causa”; definem a criação como uma forma de mudança, uma sequência causal que tornaria desnecessário um criador. Mas o criador que eles negam não é nem de longe o criador da forma como filósofos e teólogos o entendem. O criador que eles negam é um mero “agente de mudança”, mas, como Tomás de Aquino disse muitas vezes, creatio non est mutatio, criação não é mudança.
Se o que eles propõem ocorre a partir de algo pré-existente, ainda que não seja matéria, então não seria criação, e sim mudança.
Exato! Na compreensão tradicional, que vem de Aristóteles e outros gregos, a mudança é sempre “disto para aquilo”, sempre pressupõe um algo anterior. Mas o “nada” no tal tunelamento quântico é, sim, alguma coisa, ainda que esses cientistas usem a palavra “nada”. Uma das ideias do cosmólogo Alexander Vilenkin é a flutuação no “vácuo primordial”, que faz partículas subatômicas “aparecerem”. Ora, esse vácuo está, na verdade, cheio de todo tipo de coisinhas chamadas “partículas virtuais”. Se está cheio de partículas virtuais, então não é o nada, é alguma coisa. O “nada” não é o vazio, o vácuo; é a não existência.
Por que há esse uso incorreto dos termos?
Somos criaturas, e experimentamos um mundo onde as coisas mudam. É natural, para nós, entender a causalidade como se fosse uma sequência temporal, e nem sempre é tranquilo pensar de uma forma mais sofisticada, para além do senso comum, e compreender a causalidade como uma relação de dependência. É necessário adotar uma visão mais profunda, metafísica, do que significa a criação, o que é ser a causa da existência do universo. Isso é ainda mais complicado em uma cultura filosófica que herdou a ideia de causalidade de David Hume, que é bem restrita, comparada com o que encontramos em Aristóteles ou Tomás de Aquino, que têm uma perspectiva mais ampla. Então, em alguns casos podemos até falar de ignorância, mas em geral o problema é a dificuldade de pensar cuidadosamente e sistematicamente sobre esses assuntos.
No caso da criação, um elemento adicional é o fato de a maior parte da humanidade viver sob a influência do modo de pensar judaico-cristão ou islâmico. De um ponto de vista religioso, pensa-se que o mundo teve um começo e, portanto, foi criado. Já vimos que não é assim tão simples. E a noção de um mundo criado, mas que não teve um começo soa muito estranha, porque nos acostumamos a ver a criação como uma ideia exclusivamente religiosa, que necessariamente inclui um início, que só leva em conta o que dizem os textos sagrados e por aí vai. Mas, antes da teologia, existe uma compreensão filosófica do assunto e que para muita gente é algo completamente desconhecido.
Como reduzir esse fosso entre cientistas, teólogos e filósofos para que eles possam falar a mesma língua?
Aristóteles disse que você precisa ter certeza de que estão todos falando sobre a mesma coisa usando os mesmos conceitos. Isso exige um certo nível de instrução e de discurso, que por sua vez exige pessoas que tenham conhecimento tanto das distinções filosóficas e teológicas quanto dos últimos avanços científicos, para que elas possam esclarecer os conceitos. É uma tarefa que necessita de gente disposta a trabalhar na educação filosófica dos cientistas e na educação científica dos filósofos e teólogos – isso sem falar, claro, da opinião pública; não seria saudável deixá-la de fora dessa discussão.
Os filósofos, teólogos e cientistas estão dispostos a isso?
Alguns estão, outros não. Antes de entrar em uma discussão como essa é preciso estar consciente de que tal discussão é possível e importante; antes de pesquisar um assunto, é preciso estar convencido de que há algo a pesquisar. Em outras palavras, se você quer aprender a jogar tênis, primeiro tem de saber que existe um jogo chamado “tênis”, e só então você buscará conhecer as regras, entender os princípios envolvidos no jogo e desenvolver os hábitos físicos e mentais para jogar. Se você nem sabe que esse esporte existe, por que procuraria saber algo sobre ele? Esse é o problema hoje, muita gente não quer nem ouvir falar de uma “conversa” entre ciência e religião ou filosofia. Essas pessoas não são capazes de ver que existe uma questão a ser investigada sobre o real significado da criação no contexto das ciências naturais.
Mas há outros que estão cientes disso, e o que elas precisam fazer é aprender como pesquisar esse assunto. Assim como o tênis, se você vai entrar em um debate metafísico sobre as causas da existência, precisa primeiro saber que existe uma disciplina chamada metafísica, e que ela tem suas regras que precisam ser compreendidas antes de você entrar em campo. Mas é uma formação que leva algum tempo.
(Aviso: a Fundação John Templeton e o Centro Ian Ramsey para Ciência e Religião da Universidade de Oxford bancaram a viagem e a hospedagem do jornalista em Santiago)
Pequeno merchan
Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.
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