Daí passamos para o lado religioso da questão. Scaraffia ainda apresenta um outro argumento contra a idéia corrente de morte encefálica, desta vez de ordem teológica: a aceitação deste conceito pela Igreja entraria em contradição com a visão católica do ser humano, pois haveria uma identificação da pessoa com a atividade cerebral, uma espécie de “redução” da pessoa humana à mera presença de impulsos elétricos circulando por neurônios. Como a autora não aprofunda este ponto, admito ficar um pouco “no ar” em relação a esta suposta contradição, mas por outro lado entendo que, como a Igreja defende a vida humana em sua integridade e totalidade, pode ser mesmo um contra-senso declarar morta uma pessoa que tem um prognóstico (incerto) de morte, mas cujo pulso ainda pulsa, como diria Arnaldo Antunes.
Uma pista pode estar no ponto 5 do discurso de João Paulo II no XVIII Congresso Internacional Sobre Transplantes, em agosto de 2000. Seleciono alguns trechos (os itálicos são do original, e os negritos são meus):
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Sabe-se muito bem que, desde há algum tempo, diversas abordagens científicas da certificação da morte transferiram a ênfase dos tradicionais sinais cardiorrespiratórios para o chamado critério “neurológico” (…) da cessação total e irreversível de qualquer atividade encefálica (cérebro, cerebelo e tronco encefálico), como sinal da perda da capacidade de integração do organismo individual como tal.
(…) a Igreja não toma decisões técnicas, mas limita-se a exercer a responsabilidade evangélica de confrontar os dados oferecidos pela ciência médica com uma concepção cristã da unidade da pessoa, evidenciando semelhanças e eventuais contradições, que poderiam pôr em perigo o respeito pela dignidade humana.
Nesta perspectiva, pode-se afirmar que o supramencionado critério de certificação da morte recentemente adotado, isto é, a cessação total e irreversível de toda a atividade encefálica, se for aplicado de maneira escrupulosa, não parece contrastar os elementos essenciais duma sólida antropologia.
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Ou seja, de acordo com a Igreja o critério da morte encefálica pode ser aceito, desde que aplicado escrupulosamente – sem “inventar” ou “apressar” mortes de pacientes, e isso ainda estaria de acordo com a antropologia católica. A questão é: a aplicação escrupulosa pedida pelo Papa corresponde à prática atual dos hospitais? Estariam os pacientes sendo declarados mortos antes que se verifique a “cessação total e irreversível de toda a atividade encefálica” mencionada pelo Papa? Se olharmos os casos de Dunlap e outros mencionados aqui, veremos que naquelas situações a cessação da atividade cerebral não era irreversível, pois os pacientes se recuperaram.
E ainda há uma questão que parece vital: para respeitar a solicitação do Papa, esperando essa “cessação total e irreversível”, ainda seria possível salvar órgãos do paciente morto para transplante?
Teologicamente, a morte é definida como o momento em que a alma se separa do corpo. Mas, como o Papa diz no mesmo discurso já citado, não há ciência no mundo que consiga identificar este momento; no entanto, esse evento produz sinais biológicos, esses sim captáveis pela ciência. E a Igreja não tem competência científica para determinar qual o critério clínico para a morte, ou inventar ela mesma um critério. A única fonte que ela tem são os resultados dos trabalhos médicos sobre o assunto, pois a Igreja apenas trabalha com as informações que tem em mãos. Se a pesquisa médica apontar, no futuro, para um critério mais confiável para determinar o momento da morte, a Igreja é livre para adotá-lo sem comprometer seu ensinamento, embora certamente haverá quem saia trombeteando por aí que “a Igreja mudou sua doutrina”.
E é justamente essa evolução da pesquisa médica que Scaraffia ressalta em seu artigo. A questão não é exatamente que a ausência total e irreversível de atividade cerebral não sirva para se comprovar clinicamente a morte. O problema é que hoje a Medicina sabe que nem todos os pacientes com ausência de manifestações neurológicas estão necessariamente mortos, ou em estado irreversível: alguns deles podem estar passando pela “penumbra isquêmica” e ter seu quadro revertido caso sejam tomadas as medidas corretas. Isso não era conhecido em 1968. Mas, mesmo hoje, esses pacientes podem ter negada a chance de recuperação se, em vez de se tentar salvá-los, aplicar-se neles o teste de apnéia, acabando com qualquer perspectiva, ainda que mínima, de recuperação. Ou seja: apesar de todas as descobertas sobre a “penumbra”, na hora de atestar a morte permanece a mentalidade de 1968: “não há manifestação cerebral? Então é porque não há fluxo sangüíneo no cérebro, o paciente está morto”.
O debate sobre o conceito de morte encefálica não é novo: já dura mais de 10 anos e vem rolando principalmente nas publicações especializadas, como o British Medical Journal (também aqui); de vez em quando resvala para a grande imprensa, como neste comentário da blogueira Melanie Philips (do britânico The Spectator). Anteontem foi a vez do Maurício Tuffani, do Laudas Críticas, que já havia tratado do assunto anteriormente. O artigo do L’Osservatore promete colocar mais lenha na fogueira ao levar o debate de vez para a esfera pública. Teremos uma revisão dos conceitos de Harvard?