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Devagar com o andor da morte encefálica

Perdoem o post excessivamente longo,‭ ‬mas o assunto exige, como vocês verão.

Enquanto eu escrevia os textos de‭ “‬inauguração” ‬do blog na semana passada,‭ ‬o mundo já estava em polvorosa em relação a um artigo publicado no L’Osservatore Romano, o jornal do Vaticano.‭ ‬Aliás,‭ ‬acho que jornalistas,‭ ‬especialmente de certas agências noticiosas,‭ ‬deviam ser proibidos de ler o L’Osservatore sem antes fazer um bom curso de interpretação de texto.‭ ‬Afinal,‭ ‬recentemente,‭ ‬de uma entrevista do vice da Penitenciaria Apostólica saiu aquela lista de‭ “‬novos pecados capitais” ‬que não tinha fundamento nenhum‭; ‬da entrevista do diretor do Observatório Astronômico do Vaticano saiu gente dizendo que a Igreja aceitava os ETs como filhos de Deus‭; ‬e,‭ ‬agora,‭ ‬sai um artigo no jornal e vemos manchetes como a do Terra‭ (?Vaticano diz que vida não acaba com morte cerebral‭) ‬ou da Ansa‭ (‬Para Vaticano,? ?morte cerebral não caracteriza mais a morte‭)‬.‭ ‬E vejam que,‭ ‬no mesmo dia em que saiu o artigo,‭ ‬o diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé disse com todas as letras que o artigo era só isso,‭ ‬um artigo.‭ ‬Não representava nenhuma mudança no posicionamento da Igreja‭ (‬ao contrário do que disseram por aí‭)‬,‭ ‬sequer era um editorial‭ (‬ao contrário do que publicou a Ansa‭)‬.‭ ‬Não acreditam‭? ‬Clique aqui.

Mas vamos ao artigo‭ ‬em si.‭ ‬O texto de Lucetta Scaraffia,‭ ‬em italiano,‭ ‬pode ser lido aqui.‭ ‬Basicamente,‭ ‬diz o seguinte:‭ ‬na década de‭ 60,‭ ‬o chamado‭ “relatório Harvard‭” ‬concluiu que o critério para se determinar a morte não era mais a parada cardiorrespiratória,‭ ‬e sim a morte encefálica.‭ ‬No entanto,‭ ‬pesquisas recentes estão colocando esse conceito em dúvida,‭ ‬e a autora lembra casos de gestantes consideradas‭ “‬mortas‭” ‬em que a gravidez foi levada adiante,‭ ‬tendo como resultado aborto espontâneo ou nascimento da criança.‭ ‬Então,‭ ‬na verdade,‭ ‬a definição de morte encefálica não seria precisa e teria sido motivada,‭ ‬mais que por exatidão científica,‭ ‬por necessidade de órgãos para transplante‭ – ‬além disso,‭ ‬é sempre possível confundir coma com morte cerebral,‭ ‬e em‭ ‬1991‭ ‬o cardeal Ratzinger já teria alertado para a possibilidade de pacientes em coma irreversível serem declarados clinicamente mortos para que seus órgãos fossem retirados.‭ ‬Segundo a autora,‭ ‬o problema de a Igreja aceitar o critério de morte encefálica é reduzir a existência à atividade do cérebro,‭ ‬o que contraria a idéia católica de pessoa humana e as diretrizes da Igreja nos casos de coma persistente. O artigo termina lembrando que, em‭ ‬2005,‭ ‬a Pontifícia Academia de Ciências realizou um congresso chamado‭ “‬Os Sinais da Morte‭” (‬mesmo nome do artigo de Scaraffia‭).

Existem duas questões aqui, a médica e a teológica. Comecemos pelo lado científico. Afinal,‭ ‬o problema são diagnósticos mal-feitos ou o próprio conceito de morte encefálica em si‭? ‬Scaraffia cita em seu artigo o livro Finis Vitae:‭ ‬Is brain death still life‭?‬,‭ ‬que teve colaboração de um brasileiro.‭ ‬Em sua colaboração para o livro,‭ ‬o neurologista Cícero Galli Coimbra,‭ ‬professor da Universidade Federal de São Paulo‭ (‬antiga Escola Paulista de Medicina‭)‬,‭ ‬explica os problemas do entendimento atual de morte encefálica.‭ ‬Para quem,‭ ‬como eu,‭ ‬não é médico,‭ ‬segue uma explicação:‭ ‬o comprometimento total do cérebro ocorreria devido a um‭ “círculo vicioso‭”‬:‭ ‬a lesão cerebral causa o edema cerebral.‭ ‬Como‭ ‬o‭ ‬cérebro‭ “‬incha” ‬por dentro do crânio e‭ ‬os ossos cranianos criam uma barreira a esse‭ “‬inchaço”‬,‭ ‬a pressão intracraniana aumenta,‭ ‬comprimindo os vasos sangüíneos e prejudicando a irrigação de todo o tecido nervoso contido no interior do crânio,‭ ‬o encéfalo.‭ ‬No entanto,‭ ‬antes de haver a redução total da circulação encefálica,‭ ‬existe um nível intermediário de circulação chamado de‭ “‬penumbra” – ‬há vários casos de pacientes nesta situação que têm morte encefálica declarada,‭ ‬mas que mesmo não apresentando atividade elétrica no eletroencefalograma,‭ ‬ainda têm a vitalidade do tecido nervoso sustentada e poderiam ter a função neurológica restituída pela restauração do fluxo sangüíneo normal.‭ ‬E esse estado de‭ “penumbra‭”‬,‭ ‬que não era conhecido em‭ ‬1968,‭ ‬tem sido confundido com‭ “dano cerebral irreversível”‬.

O tema principal do artigo de Coimbra é,‭ ‬no entanto,‭ ‬o teste de apnéia,‭ ‬considerado essencial para a verificação da morte encefálica‭ (‬e obrigatório no Brasil e em muitos outros países‭)‬.‭ ‬Ele consiste em retirar a respiração artificial do paciente por alguns minutos para testar o reflexo respiratório,‭ ‬aumentando a quantidade de gás carbônico no sangue arterial.‭ ‬Se a pressão de CO2‭ ‬chegar a um certo limite,‭ ‬e o paciente não apresentar um visível esforço respiratório,‭ ‬é declarada a morte encefálica.‭ ‬No entanto,‭ ‬o problema é que,‭ ‬se o paciente já não estiver realmente morto,‭ ‬o teste,‭ ‬em vez de constatar uma morte,‭ ‬pode causá-la,‭ ‬ao aumentar o‭ “‬inchaço” ‬do tecido cerebral e diminuir a pressão sangüínea.

E há gente por aí sendo declarada clinicamente morta e‭ “‬voltando à vida”‬.‭ ‬Conheça,‭ ‬por exemplo,‭ ‬as histórias de Zack Dunlap,‭ ‬Val Thomas,‭ ‬Rae Kupferschmidt‭ (‬também aqui?) ‬e de um francês de? ?45? ?anos.‭ ‬Em pelo menos dois desses casos os médicos estavam prontos para remover os órgãos.‭ ‬E,‭ ‬se a possibilidade de milagre for excluída,‭ ‬então será preciso admitir que alguma coisa não vai bem.

Aí voltamos ao artigo de Coimbra,‭ ‬que diz haver uma espécie de malabarismo para contornar os casos de pessoas declaradas clinicamente mortas que‭ “‬voltam a viver‭”:‭ ‬os médicos atribuiriam certos movimentos não à atividade cerebral,‭ ‬mas da medula espinhal,‭ ‬apesar de não haver evidência científica disso.‭ ‬Seria um raciocínio circular:‭ ‬assume-se que os pacientes estão mesmo mortos,‭ ‬então tais movimentos,‭ ‬por mais complexos e sugestivos de origem encefálica,‭ ‬não poderiam ter origem encefálica‭ – ‬do contrário,‭ ‬o paciente não estaria clinicamente morto.

Reprodução
“Morte na Enfermaria”, de Edvard Munch (1893)

Daí passamos para o lado religioso da questão. Scaraffia ainda apresenta um outro argumento contra a idéia corrente de morte encefálica,‭ ‬desta vez de ordem teológica:‭ ‬a aceitação deste conceito pela Igreja entraria em contradição com a visão católica do ser humano,‭ ‬pois haveria uma identificação da pessoa com a atividade cerebral,‭ ‬uma espécie de‭ “‬redução” ‬da pessoa humana à mera presença de impulsos elétricos circulando por neurônios.‭ ‬Como a autora não aprofunda este ponto,‭ ‬admito ficar um pouco‭ “‬no ar” ‬em relação a esta suposta contradição,‭ ‬mas por outro lado entendo que,‭ ‬como a Igreja defende a vida humana em sua integridade e totalidade,‭ ‬pode ser mesmo um‭ ‬contra-senso declarar morta uma pessoa que tem‭ ‬um‭ ‬prognóstico‭ (‬incerto‭) ‬de morte,‭ ‬mas cujo pulso ainda pulsa,‭ ‬como diria Arnaldo Antunes.

Uma pista pode estar no ponto 5 do discurso de João Paulo II no XVIII Congresso Internacional Sobre Transplantes,‭ ‬em agosto de‭ ‬2000‭. Seleciono alguns trechos (‬os itálicos são do original, e os negritos são meus‭)‬:

——

‭Sabe-se muito bem que,‭ ‬desde há algum tempo,‭ ‬diversas abordagens científicas da certificação da morte transferiram a ênfase dos tradicionais sinais cardiorrespiratórios para o chamado‭ ‬critério‭ “‬neurológico‭” (…)‭ ‬da‭ ‬cessação‭ ‬total e irreversível de qualquer‭ ‬atividade encefálica‭ (‬cérebro,‭ ‬cerebelo e tronco encefálico‭)‬,‭ ‬como sinal da perda da capacidade de integração do organismo individual como tal.

(…) a Igreja não toma decisões técnicas,‭ ‬mas limita-se a exercer a responsabilidade evangélica de confrontar os dados oferecidos pela ciência médica com uma concepção cristã da unidade da pessoa,‭ ‬evidenciando semelhanças e eventuais contradições,‭ ‬que poderiam pôr em perigo o respeito pela dignidade humana.

Nesta perspectiva,‭ ‬pode-se afirmar que o supramencionado critério de certificação da morte recentemente‭ ‬adotado,‭ ‬isto é,‭ ‬a‭ ‬cessação total‭ ‬e‭ ‬irreversível de toda a‭ ‬atividade encefálica,‭ ‬se for aplicado de maneira escrupulosa,‭ ‬não parece contrastar os elementos essenciais duma sólida antropologia.

——

Ou seja,‭ ‬de acordo com a Igreja o critério da morte encefálica pode ser aceito,‭ ‬desde que aplicado escrupulosamente‭ – ‬sem‭ “‬inventar” ‬ou‭ “‬apressar” ‬mortes de pacientes,‭ ‬e isso ainda estaria de acordo com a antropologia católica.‭ ‬A questão é:‭ ‬a aplicação escrupulosa pedida pelo Papa corresponde à prática atual dos hospitais‭? ‬Estariam os pacientes sendo declarados mortos antes que se verifique a‭ “‬cessação total‭ ‬e‭ ‬irreversível de toda a‭ ‬atividade encefálica‭” ‬mencionada pelo Papa‭? Se olharmos os casos de Dunlap e outros mencionados aqui, veremos que naquelas situações a cessação da atividade cerebral não era irreversível, pois os pacientes se recuperaram.

‬E ainda há uma questão que parece vital:‭ ‬para respeitar a solicitação do Papa,‭ ‬esperando essa‭ “cessação total e irreversível‭”‬,‭ ‬ainda seria possível salvar órgãos do paciente morto para transplante‭?

Teologicamente, a morte é definida como o momento em que a alma se separa do corpo. Mas, como o Papa diz no mesmo discurso já citado, não há ciência no mundo que consiga identificar este momento; no entanto, esse evento produz sinais biológicos, esses sim captáveis pela ciência. E a Igreja não tem competência científica para determinar qual o critério clínico para a morte,‭ ‬ou inventar ela mesma um critério.‭ ‬A única fonte que ela tem são os resultados dos trabalhos médicos sobre o assunto,‭ ‬pois a Igreja apenas trabalha com as informações que tem‭ ‬em mãos.‭ ‬Se a pesquisa médica apontar,‭ ‬no futuro,‭ ‬para um critério mais confiável para determinar o momento da morte,‭ ‬a Igreja é livre para adotá-lo sem comprometer seu ensinamento,‭ ‬embora certamente haverá quem saia trombeteando por aí que‭ “a Igreja mudou sua doutrina‭”.

E é justamente essa evolução da pesquisa médica que Scaraffia ressalta em seu artigo. A questão não é exatamente que a ausência total e irreversível de atividade cerebral não sirva para se comprovar clinicamente a morte. O problema é que hoje a Medicina sabe que nem todos os pacientes com ausência de manifestações neurológicas estão necessariamente mortos, ou em estado irreversível: alguns deles podem estar passando pela “penumbra isquêmica” e ter seu quadro revertido caso sejam tomadas as medidas corretas. Isso não era conhecido em 1968. Mas, mesmo hoje, esses pacientes podem ter negada a chance de recuperação se, em vez de se tentar salvá-los, aplicar-se neles o teste de apnéia, acabando com qualquer perspectiva, ainda que mínima, de recuperação. Ou seja: apesar de todas as descobertas sobre a “penumbra”, na hora de atestar a morte permanece a mentalidade de 1968: “não há manifestação cerebral? Então é porque não há fluxo sangüíneo no cérebro, o paciente está morto”.

O debate sobre o conceito de morte encefálica não é novo:‭ ‬já dura mais de‭ ‬10‭ ‬anos e vem rolando principalmente nas publicações especializadas,‭ ‬como o British Medical Journal‭ (‬também aqui‭); de vez em quando resvala para a grande imprensa, como neste comentário da blogueira Melanie Philips (do britânico The Spectator). Anteontem foi a vez do Maurício Tuffani, do Laudas Críticas, que já havia tratado do assunto anteriormente. O artigo do L’Osservatore promete colocar mais lenha na fogueira ao levar o debate de vez para a esfera pública. Teremos uma revisão dos conceitos de Harvard?

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