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Com Deus e sem médico

Dos tribunais dos Estados Unidos vêm duas histórias muito parecidas e igualmente pavorosas. No estado do Wisconsin, uma menina de 11 anos morreu de diabetes ano passado, simplesmente porque seus pais não quiseram levá-la ao médico quando seu estado de saúde piorou. O casal foi processado por homicídio. A mãe da menina já foi condenada e aguarda sentença. Depondo no processo de seu marido, ontem, ela disse considerar que a doença era um teste enviado por Deus e que Ele poderia curar a garota. E no Oregon, já saiu o veredito para o casal que deixou sua filha de 15 meses morrer. A mãe foi absolvida e o pai foi condenado, mas não pelo crime mais grave. A sentença sai amanhã.

Não entro no mérito legal da coisa, digo, se os pais deveriam ir para a cadeia, ou se a morte dos filhos já é punição suficiente para eles. O que eu imagino é que, diante desses casos lamentáveis, um ou outro venha aqui dizer “tá vendo? É isso que a religião faz com as pessoas”, etc. etc. etc. Aí voltamos àquela discussão que estávamos tendo na caixa de comentários sobre o fundamentalismo. O fundamentalismo é uma distorção da religiosidade, não a essência dela. Posso garantir que a maioria das pessoas religiosas leva os filhos ao médico quando eles ficam doentes. E não desrespeitam nenhum preceito de fé ao fazer isso. Inclusive, a atitude dos pais norte-americanos poderia ser classificada como “tentar a Deus”, algo do tipo “se Deus existe/é bom/me ama/é poderoso, vai salvar meu filho”, e me lembra aquela historinha do sujeito no telhado de casa durante a enchente, que recusa um barco e um helicóptero, dizendo que Deus vai salvá-lo (o fim todo mundo sabe). No caso, o barco e o helicóptero são justamente os médicos e cientistas. Muitos deles inclusive veem em seu trabalho uma maneira de fazer o que Deus espera deles. Louis Pasteur era um exemplo dessa mentalidade, e vejam o que o homem conseguiu.

Uma religiosidade sadia sabe que, claro, Deus pode curar, mas que ao mesmo tempo isso é algo absolutamente extraordinário, pois os meios ordinários estão à nossa disposição graças à ciência. Rezar pela cura não tem nada de nocivo, e as igrejas cristãs inclusive têm um sacramento, o da Unção dos Enfermos, dedicado especialmente aos doentes; o problema é ignorar todos os avanços da Medicina em nome de uma confiança em Deus. “Rezar como se tudo dependesse de Deus e agir como se tudo dependesse de nós” é uma frase atribuída justamente a um santo, Inácio de Loyola.

Priscila Forone/Gazeta do Povo
A Igreja Católica adverte: só oração, sem médico, pode acabar com suas chances de cura.

Dos dois casais que enfrentam os tribunais nos Estados Unidos, um não frequenta igreja nenhuma, e o outro pertence a um grupo pequeno pentecostal. Mas sabemos que em certas seitas bem populares no Brasil, e mesmo nos ambientes mais histéricos dos católicos “carismágicos” (para diferenciar dos carismáticos equilibrados), há uma profusão de supostas curas sobre as quais eu sou um tanto cético. Inclusive por causa dessa sangria desatada o Vaticano lançou, em 2000, um documento assinado pelo então cardeal Ratzinger, hoje Papa Bento XVI. A Instrução sobre as orações para alcançar de Deus a cura inclusive deixa claro que ninguém pode deixar de recorrer à ciência para vencer seus problemas de saúde: É óbvio que o recurso à oração não exclui, antes encoraja, o emprego dos meios naturais úteis a conservar e a recuperar a saúde e, por outro lado, estimula os filhos da Igreja a cuidar dos doentes e a aliviá-los no corpo e no espírito, procurando vencer a doença. Com efeito, “reentra no próprio plano de Deus e da sua Providência que o homem lute com todas as forças contra a doença em todas as suas formas e se esforce, de todas as maneiras, por manter-se em saúde”. Recomendo a leitura do documento porque ele também deixa pistas para a compreensão de questões como o sofrimento, a dor e a morte à luz da doutrina católica — e, como sabemos, a questão do sofrimento é uma das mais espinhosas na discussão sobre a existência de Deus.

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