Ni hao,
你好
O post de hoje é sobre a Liu (fala-se Liou)! Vou deixar que ela mesma se apresente.
Liu é minha empregada. Na China, chama-se “ayi” e significa tia por parte de mãe. Ou seja, como a família da mulher é inferior a do homem, “ayi” carrega algo de subalterno no nome, apesar de ser uma forma carinhosa de se tratar a empregada.
Nós só a chamamos de Liu e, toda vez que as crianças estão me contando uma história, (“aí, ele me perguntou… aí, eu respondi”) a Liu fica respondendo: Yes, yes, yes!
A Liu é muito, mas muito mais do que uma empregada para mim. Ela é minha tradutora, interprete, professora de chinês e de cultura chinesa, além de confidente e conselheira para assuntos cotidianos.
Já me tirou de grandes roubadas, como por exemplo, passar por telefone o endereço da nossa casa para o motorista de taxi que não consegue nos entender (aliás, ela faz isso quase todos os dias!); explicar para a caixa do supermercado que eu já paguei pelo produto, antes de ser presa; me ajudar a fazer compras e negociar o valor…
Quando eu telefono, ela já sabe que é uma missão de salvamento.
Liu chegou aqui em casa por engano. A administradora do condomínio marcou de me apresentar a uma empregada às 9 da manhã. Oito e meia, Liu e mais duas amigas, falando um inglês ininteligível a 150 decibéis, chegaram em casa e me socaram, literalmente, nas mãos uma carta de recomendação de uma canadense. A canadense falava tão bem da Liu que eu a contratei na mesma hora. Às nove, chegaram a administradora e a “verdadeira” empregada, mas era tarde demais. Liu já tinha entrado em nossas vidas.
Liu é uma mulher de 47 anos, casada há 17. Ela saiu da sua província em busca de emprego e de um salário descente. O pai que mora na área rural e, pelo que ela descreve, tem Alzheimer, vive sumindo de casa e dando muito trabalho para sua mãe, além de preocupação para toda família. Os asilos não querem aceitá-lo e pagar um hospital privado seria impossível.
Tudo isso lembra muito a vida de nossas empregadas no Brasil, certo?
Certo, mas há coisas to-tal-men-te diferentes.
Liu dança todos os dias de manhã, pelo menos uma hora e meia. Hoje fui à pracinha vê-la pessoalmente e tive a maior surpresa! Liu é o maior pé de valsa!
Ela aprendeu a falar inglês sozinha (o que, para um chinês, é um feito e tanto), além do mandarim, pois em sua província de origem se fala outro dialeto. Ela me conta que passava os dias inteiros ouvindo filmes em inglês, que os antigos patrões lhe deram, para poder se comunicar direito com eles.
Aliás, foi com o “old boss”, como ela diz, que também aprendeu a jogar as capas dos dvds no lixo. Um dia, depois de procurar a capa do Harry Potter pela casa inteira, perguntei se ela o tinha visto. Ela abriu a lata de lixo e me mostrou várias capas amassadas lá dentro! Quando viu minha cara de espanto, ficou repetindo “sorry, sorry, sorry”, estridentemente, sem entender o motivo da minha surpresa.
A Liu só fala gritando e repete a mesma frase pelo menos duas vezes. Uma vez meu celular tocou e ela atendeu correndo: Hello, hello !!!!! Quando ela me passou para o Luiz, ele perguntou se eu conhecia algum otorrino por que acabara de ficar surdo!
O inglês da Liu é fundamental para nossa convivência, mas confesso que, de tanto conversar com ela, estou começando a falar umas coisas estranhas do tipo: “She very like me”, ou “I cook very clean” ou “We are very best friend”.
Tem chinelinho da Liu espalhado pela casa inteira. Um para andar do lado de fora, um para andar no primeiro andar da casa e outro no segundo, além dos sapatos com que ela vem trabalhar. Ela tentou me explicar o motivo de tantos chinelinhos, mas eu não consegui entender. Porém, com certeza, isso é um sinal de carinho com as coisas da família.
Um dia a Liu trouxe uma pilha de roupas passadas e começou a separar: “essa é do pequeno garoto, essa é do outro pequeno garoto, essa é do grande garoto”. Foi assim que eu descobri que a Liu, apesar de já estar há quase 1 mês conosco, não tinha a menor ideia dos nossos nomes. A única solução foi fazer o desenhinho abaixo que ela guardou até aprender todos de cor:
Aliás, o google tradutor é um dádiva para quem está na nossa situação. Graças a ele, eu consegui resolver o problema diário de dizer o que a Liu deveria cozinhar. Era um tal de abrir a geladeira, tirar tudo de dentro, fazer mímica…. Aí eu tive a ideia de imprimir umas cartelinhas com o nome dos pratos em inglês e chinês. Agora, eu deixo a cartelinha do dia na porta da geladeira e vou à luta!
Liu diz que não sabe cozinhar e que é o marido quem prepara o jantar, porque acha que a comida dela não tem fritura suficiente (graças a Deus!).
Ainda assim, enquanto eu ainda precisava ensiná-la a cozinhar “à brasileira”, ela me deu algumas dicas como: só colocar sal depois da comida pronta (nunca antes), adicionar um ovo às carnes cruas para deixá-las mais macias, cozinhar legumes em um dedo de água para não perder o gosto e temperar com molho de ostra.
Ela não se conforma que a gente não coma osso de galinha e fica tentando empurrar osso para todo mundo, porque é “muito saudável”.
A Liu só cozinha com rachi ( que na China se chama kuàizi) e com sua mega ultra faca que trouxe de casa para mim. Aliás, a faca, o ferro, a tábua de passar, uma régua de luz, uma panela de banho-maria e vários outros utensílios domésticos que eu vou descobrindo aos poucos. Meus garfões, escumadeiras, colheres gigantes e outros apetrechos culinários ficam guardados na gaveta.
Aliás, eu desisti de ensiná-la a deixar a mesa posta para o jantar. Em dia de sopa, ela colocava prato raso e kuàizi. Em dia de feijão com arroz, ela colocava prato de sopa e colher. Garfo e faca nunca apareceram à mesa. Os jogos americanos eram alinhados pelo centro e não pela extremidade da mesa, ou seja, uma zona federal, ou melhor, oriental.
Falando em comida, a Liu é menor do que eu, mas come como gente grande. Ela enche um pote de arroz até a borda e depois vai colocando por cima tudo que há na geladeira: a sopa do dia anterior, os vegetais do dia, o feijão que eu cozinhei e por ai vai. E para mostrar que está tudo super gostoso, ela faz o maior barulhão com a boca. Quanto mais gostoso está, mais barulho a Liu faz para eu ficar feliz. E eu fico!
Logo no início, quando ainda não havia muito intimidade entre a gente, a Liu fazia o pote dela e sentava na escada para almoçar (os chineses adoraram se acocorar em qualquer cantinho para comer). Agora, que já somos amigas, ela senta comigo no balcão da cozinha e fica empurrando a comida para dentro da boca com os kuàizi e gemendo “very yummy, very yummy”.
A gente fica imaginando que as pessoas de olhinhos puxados, do outro lado do mundo, são muito diferentes de nós só porque comem cachorro.
A realidade, é que a Liu é uma mulher como tantas outras que existem no Brasil: batalhadoras, generosas, preocupadas com os pais, dedicada e orgulhosa dos filhos.
Mulheres que estão passando pela crise dos 40, que sentem calores e têm insônia.
A Liu é um grande aprendizado para toda a família. Ela nos adotou. E sem o seu bom humor, as comidinhas novas que ela traz toda semana do mercado, seu “zhao shang hao” (bom dia) matinal, nossas vidas não seriam tão descomplicadas.
Mais do que isso. Ela faz com que nos sintamos seguros na China. E nos sentirmos amparados, é o que mais precisamos por aqui!
E sabem qual o sonho da Liu? Se aposentar aos 50 anos e viajar por toooooooda a China!
É querida Liu, só faltam 3 anos! E, se sobrar um tempinho, quem sabe você não dá uma passadinha pelo Brasil!
Até a semana que vem. 下周见 xià zhóu jiàn