Como as torcidas do Coxa e do Atlético, os adeptos dos vinhos tradicionais vivem em permanente conflito com os fanáticos pelos vinhos modernos. Os antigos acusam os modernos de fazerem “Coca-Cola wines”, bebidas de fundo doce, muito frutadas, através de processos de alta tecnologia e intervenção. Vinhos globalizados, sem identidade regional. Os modernistas devolvem e rotulam os adversários de fundamentalismo, apego a práticas enológicas defuntas e de origem questionável, que dão vinhos duros e ásperos, impossíveis de beber novos e, quando velhos, já mortos.
Lembrei do tema quando degustava um grande Barolo. Em poucos lugares do mundo a rixa dos classistas com modernistas foi tão acesa como no Piemonte, com sua mais notável uva, a Nebbiolo. Ainda há as duas escolas bem marcadas. Aproximaram-se face à adoção das boas práticas enológicas gerais e o bom senso. Mas ainda são duas igrejas rivais. Uma das diferenças centrais é o período em que deixam as películas das uvas em contato com o mosto. No altar dos clássicos, cerca de 30 dias, tempo longo. No dos modernistas, cerca de 20. Também o estágio na madeira. Os clássicos deixam o vinho por mais tempo em tonéis grandes de madeira usada, os botti. A outra escola utiliza barris de carvalho, boa parte nova, na casa dos 250 litros cada, e deixam menos tempo o vinho na madeira. Entre os classicistas, Mascarello, Giacosa, Giacomo Conterno . Entre o modernistas, Elio Altare, Domenico Clerico, Voerzio.
Particularmente acho saudável e excelente que existam as duas escolas. Cada qual com um estilo diferente. Em qualquer delas, se é bom o produtor, temos vinhos fantásticos. As acusações das torcidas são válidas para os abusos dos maus produtores.
Bem, o vinho que bebi não é de nenhum dos dois extremos. Era o Barolo Pio Cesare 2004. Fabuloso: grande equilíbrio, força e elegância, com fruta madura, opulenta e refinada, lembra tâmaras, tem taninos maduros e finos. Não podia haver companhia melhor para um excelente barreado no domingo chuvoso.
Carménerè às cegas
A uva Carménère transformou-se num ícone da vinicultura chilena. Mutação da célebre Cabernet Sauvignon, era usada nos grandes vinhos de Bordeaux no século 19. Após a praga da filoxera não foi replantada na sua origem, por ser casta de trato difícil. Mas sobreviveu no Chile, imune à praga, denominada Merlot Chileno. Em 1991 sua verdadeira identidade foi descoberta com exames de DNA. O nome vem da bela coloração carmim, que tinge suas folhas no outono.
Dá tintos escuros e encorpados. Lembra a Cabernet Sauvignon na textura, mas exibe nuances vegetais e acidez mais intensas. Daí a importância de ser bem cultivada e vinificada, senão ao invés de um agradável e fresco verdor sadio aparecem herbáceos pesados e duros. O Chile dominou a técnica perfeitamente. Há 12 ou 15 anos, com raras exceções, os Carménères eram pesadões e vegetais. Hoje, as raras exceções são os Carménères mais duros. Foi o que mostrou nossa prova: bem acabados, encorpados, viris, taninos finos, de frutado intenso e maduro, com nuances a cacau, baunilha, e notas de ervas finas. O uso do carvalho para estágio é essencial, mas não pode ser em excesso.
Provamos às cegas 22 amostras. Os rótulos só foram revelados após a prova. Qualidade geral muito boa, de vinhos encorpados, com personalidade, ideais para acompanhar carnes, churrascos e assados. Apresentamos aos leitores os seis campeões. A degustação transcorreu no restaurante Donadoni com serviço do maître Marcos.
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