Maniwaki, Quebec – Quando a chef algonquin Cezin Nottaway tinha cinco anos, sua mãe a ensinou como matar e tirar a pele do castor só com as mãos. A menininha também aprendeu a fazer armadilhas para coelhos e a atrair o alce para fora da floresta imitando seu grunhido assustador.
“Usamos os ingredientes locais desde muito antes de virar moda”, comenta Nottaway, 38 anos, na cozinha de seu chalé de madeira, na reserva Kitigan Zibi, perto desta cidade localizada a pouco menos de 140 km a norte de Ottawa, em Ontário.
Aqui ela prepara pratos como o assado de alce defumado com chá e cebola para casamentos, velórios e eventos de caridade. Sua empresa, a Wawatay Catering, já alimentou alunos primários, um grupo de juízes e até o ex-primeiro-ministro canadense Joe Clark.
Nottaway, que usou a palavra em algonquin para “luzes do norte” como nome da companhia, faz parte de uma nova geração de chefs canadenses que está redescobrindo e popularizando pratos indígenas como parte de uma afirmação culinária de identidade que só faz crescer.
“Apostar nessa gastronomia é uma forma de recuperar o que é nosso”, diz.
Esse interesse renovado coincide com um momento em que o Canadá tenta se reconciliar com seu passado colonial turbulento. Entre outros abusos, o governo, como também as autoridades religiosas, impediam as crianças nativas de consumirem os pratos indígenas nas “escolas residenciais” criadas para assimilá-las, além de restringir o acesso à alimentação para expulsar as famílias da terra e assim ter a oportunidade de explorá-la.
Em setembro, o primeiro-ministro Justin Trudeau reconheceu a “humilhação, negligência e abuso” cometidos contra os indígenas no passado e prometeu na sede da ONU melhorar a vida do 1,4 milhão de nativos. A iniciativa, ainda que tardia, acompanhou uma apreciação renovada de sua cultura, incluindo uma culinária rica de séculos de tradição.
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Comida indígena
E ela está ressurgindo em todo lugar. Em meados deste ano, Rich Francis, chef indígena que terminou em terceiro lugar no “Top Chef Canada“, em 2014, apresentará “Red Chef Revival”, uma série nova do YouTube que vai explorar, entre outros temas, as raízes da cozinha nativa.
Há food trucks com opções indígenas na Colúmbia Britânica, cursos sendo oferecidos em Ottawa e cafés e restaurantes novos em Toronto, incluindo o Ku-kum Kitchen e o NishDish, que servem pratos como salada de dente-de-leão e cranberry. Nottaway serviu sopa cremosa de peixe defumada para milhares de pessoas na sede do governo, em Ottawa, durante as comemorações dos 150 anos do Canadá, em 2017.
“A reconciliação política está promovendo a redescoberta culinária e uma verdadeira renascença em todos os aspectos”, comemora o chef quebequense Jean Paul Grappe.
Aos 75 anos, a eminência parda da culinária canadense e um dos primeiros defensores da culinária nativa está viajando pela província para ensinar os jovens chefs criados na era do Twitter a usar as técnicas de seus ancestrais, tais como a preparação da perdiz, cobrindo-a de argila e deixando que cozinhe oito horas sobre pedras aquecidas no chão.
Nottaway, que também atende pelo nome francês-canadense de Marie-Cecile, é membro da nação algonquin, um dos onze grupos indígenas de Quebec que viviam na região muito antes da chegada dos colonizadores europeus, no século XVII.
Depois de décadas nas quais essas comunidades tiveram que enfrentar discriminação, pobreza, o vício no jogo, suicídios e alcoolismo, Nottaway encara a adoção das técnicas tradicionais de cozinha como nada menos que uma “autodescolonização“.
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“Fui criada à base dessa comida. Roubaram nossa terra, nossa cultura e a nossa língua, mas estou lutando para recuperar nossa culinária.”
Carismática, a chef trilíngue (ela fala inglês, francês e algonquin) concilia o bufê com a criação dos dois filhos e se sente à vontade manipulando tanto a pistola como o espeto. Seu interesse pela cozinha tradicional surgiu ainda na adolescência, quando começou a trocar as idas ao McDonald’s pelo aprendizado das receitas algonquin transmitidas oralmente por suas avós.
Para garantir que a neta não perdesse o contato com a terra, as anciãs lhe ensinaram como defumar a carne de alce com madeira apodrecida e como matar um coelho apenas colocando o dedo indicador de maneira certa em seu peito.
“Minhas avós me ensinaram desde muito cedo que eu não devia me sentir culpada por matar os animais, pois eles sofrem e se sentem solitários se não são abatidos. Respeitamos os animais e rezamos para seu espírito como forma de agradecimento”, comenta ela enquanto serve o refogado de cabeça de coelho servido com alho selvagem para seus três convidados.
Nottaway afirma que seu interesse em reviver a cozinha nativa também faz parte de uma iniciativa nacional mais ampla de melhorar a nutrição nessas comunidades, onde, segundo observou, a retirada das pessoas da terra contribuiu para a piora do estado de saúde, com um estilo de vida mais sedentário e a proliferação do consumo de comida processada e fast-food.
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A polêmica carne de caça
Entretanto, embora esteja voltando a ser valorizada, a cozinha indígena vem atraindo críticas dos defensores dos direitos animais, que reclamam que servir a carne de caça viola a lei de segurança alimentar nacional, que a proíbe na maioria dos restaurantes.
Em 2014, o governo quebequense propôs uma exceção temporária à lei, que permitiria a dez restaurantes badalados, incluindo Au Pied de Cochon e Joe Beef em Montreal, a servir o produto proveniente de caçadores com licença, mas o plano naufragou. (Em Quebec, os nativos podem servir a carne do animal que caçarem nas reservas.)
Manifestantes organizaram abaixo-assinados contra alguns estabelecimentos, incluindo o popular Ku-kum Kitchen, que oferece filé e tartare de carne de foca (o que é permitido por lei. O fornecimento do Ku-kum é garantido pelo produtor SeaDNA, que tem permissão do Departamento de Pesca e Oceanos do Canadá a caçar uma cota anual para “consumo da carne e do óleo”.)
No final de 2017, uma petição que pedia ao Ku-kum a retirada do item do cardápio conseguiu mais de 6.500 assinaturas. “O abate é muito violento, cruel, horrendo, traumatizante e totalmente desnecessário“, dizia o documento, acrescentando que a carne de foca era obtida “por uma empresa em escala comercial que não tinha nada a ver com a caça indígena”.
O movimento fez surgir uma petição-resposta questionando por que todas as atenções se voltaram a um único restaurante quando há vários outros na cidade que usam a iguaria.
“É hora de acabar com o ciclo de ignorância proposital e seletiva dos canadenses que continuam a impor seus valores egoístas e irrefletidos sobre as práticas e os povos indígenas”, diz o texto escrito pela artista plástica de Toronto Aylan Couchie, que é anishinaabe da primeira nação Nipissing.
Nottaway argumenta que caçar faz parte de sua identidade e a mesma carne que prepara para os clientes é aquela que serve com capricho para sua família.
“Esta comida faz parte da minha identidade e não há motivo para não a servir, mesmo que isso signifique desrespeitar a lei”, afirma, indignada, observando que a carne produzida em escala industrial é cheia de aditivos e produtos químicos.
Apesar da polêmica, um desafio ainda maior aguarda os chefs indígenas: a identificação e a preservação de sua culinária.
George Lenser, chef em Montreal que trabalhou no Joe Beef e é membro da nação Nisga-a, do norte da Colúmbia Britânica, observa que ingredientes silvestres como bagas selvagens e tradições como a carne de caça há muito são consideradas “canadenses” ou “quebequenses”.
“Se você usa ingredientes locais pode estar arriscado a cometer apropriação culinária sem perceber porque ela já foi absorvida pela cultura canadense”, diz Lenser, 27 anos.
Ele e outros chefs e estudiosos assumiram a missão de procurar e relacionar receitas e ingredientes que desapareceram quando seus ancestrais foram assimilados à força.
Nottaway considera a culinária sua melhor arma contra a assimilação e em uma tarde de quinta-feira recente ela saiu para caçar veados, perdiz e castor na floresta coberta de neve da reserva.
Quando percebeu que seus alvos preferiam manter distância, voltou para casa e tirou uma carcaça de alce que tinha no congelador. Pouco tempo depois havia um verdadeiro banquete à mesa, incluindo a carne defumada, assada em tiras finas e acompanhada de xarope de bordo feito da seiva da árvore perto de sua casa.
“Não tem nada mais canadense que isso”, constata ela com um sorriso.
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