Não bastasse o sofrimento de ter perdido tudo, as vítimas da tragédia climática no Rio Grande do Sul ainda precisam reconstruir a vida levada pela chuva em estado máximo de alerta. A sensação de insegurança é constante, pois as facções enxergam no caos a oportunidade de praticar crimes contra a fragilizada população gaúcha. “É preciso vigilância constante. Não dá para dar bobeira, dentro e fora dos abrigos”, afirmou o alojado de 52 anos, Márcio Moura.
Assim, a segurança dos gaúchos no estado que concentra o maior número de facções criminosas do Brasil se tornou um desafio ainda maior, agravado pelo desastre climático. Segundo o levantamento do Fórum Nacional de Segurança Pública (FNSP), divulgado em 2023, existem 15 grupos criminosos em atuação: três figuram entre as principais facções: Bala na Cara; Antibala e Manos. Em todo o Brasil, há mais de 50 facções atuantes com domínio territorial.
Segundo o advogado Isidro Silveira, que lidera uma frente humanitária de ajuda aos atingidos em Porto Alegre e região metropolitana, relatos de tentativas de domínio de abrigos e alojamentos por parte de facções são constantes. “Há diversos voluntários que não querem mais auxiliar durante à noite nos abrigos por receio das facções, da tentativa de dominação. Os criminosos ditariam a quem entregar comida, quem pode entrar nos abrigos. Informações assim seguem chegando a todo momento”, revela.
Questionado pela Gazeta do Povo, o secretário de estado da Segurança Pública do Rio Grande do Sul, Sandro Caron, disse que as condições estão sob controle com vigilância constante e afirmou que não há um único abrigo que tenha qualquer tipo de ingerência, de dominação ou comando criminoso. Cerca de 700 abrigos estão distribuídos pelo estado para acolhimento de aproximadamente 77 mil pessoas,
“Estamos com 27,5 mil homens trabalhando sete dias por semana e nós vamos sim garantir a segurança de toda a população gaúcha, vamos combater também os crimes contra o patrimônio em áreas alagadas, patrulhando com embarcações e garantir a segurança das pessoas que estão nos abrigos. A ordem foi dada a todos os policiais: prender todo aquele que ouse se aproveitar desse momento de fragilidade seja nas ruas ou nos abrigos”, declarou Caron.
O secretário confirmou que denúncias de criminosos em pontos de acolhimento, principalmente nos primeiros dias da inundação, foram feitas pela população. Mas a veracidade da informação não foi confirmada pela pasta.
“A gente não sabe qual é a procedência, mas passamos a apurar e investigar todos os casos, desde as informações que circulam pelas redes sociais e aplicativos de troca de mensagens até os relatos presenciais.”
As principais facções criminosas do Rio Grande do Sul
As disputas por território e mercado das drogas se concentram entre as facções no Rio Grande do Sul, estado com maior número de organizações criminosas do Brasil. O Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando vermelho (CV), presentes em praticamente todo o território nacional, não conseguiram criar raízes no estado, mas são parceiros de grupos gaúchos.
A principal facção gaúcha é a violenta Bala Na Cara, fundada nos anos 2000, também conhecida no mundo do crime pela sigla BNC ou 2.13.3 [números que correspondem às siglas no alfabeto 2=B; 13=N e 3=C]. O grupo está fixado em Porto Alegre, mas com operações de dimensão internacional.
Investigações da Polícia Federal apontam uma ligação do grupo Bala na Cara com o PCC, apesar de não serem o mesmo conglomerado criminoso. Membros da facção participaram, segundo a PF, do roubo à Associação dos Cambistas de Cidade do Leste no Paraguai em fevereiro deste ano. Em parceria com o PCC, a operação teria levado dos cofres aproximadamente US$ 15 milhões, que representa cerca de R$ 75 milhões. As investigações apontam que parte do dinheiro entrou no Brasil para subsidiar o crime organizado e uma parte foi destinada para a compra de armas e drogas, dentro do próprio Paraguai.
Os Manos são uma organização criminosa que nasceu em presídios na região de Porto Alegre nos anos de 1990. O grupo tem investido pesado em armas e munições de grosso calibre e focado sua atuação, além do tráfico de drogas, em roubos a bancos e casa de valores no interior do estado. Em 2023, a socióloga e pesquisadora Marcelli Cipriani da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) apontou que a capacidade de impactar o mercado das drogas no atacado na região da grande Porto Alegre está restrito a essas duas organizações.
Há ainda um terceiro grupo em ascensão: o Antibala. Surgiu nos anos 2000 com uma espécie de fusão entre facções rivais e dissidentes para fazer frente a outras organizações, principalmente a facção Bala Na Cara.
“Nós não vamos aceitar facção criminosa tentando atuar em abrigo. A facção criminosa que tentar atuar dentro de abrigo vai ter uma resposta muito dura da polícia, para que sirva de exemplo. Não vamos tolerar crime contra a população gaúcha”, respondeu o secretário Sandro Caron.
Carga com armas dentro de aeroporto foi cobiçada por facções no RS
Um grande carregamento de armas que aguardava o despacho no Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, poderia ter sido alvo de facções criminosas no Rio Grande do Sul. Durante a inundação, o serviço aéreo foi suspenso antes do envio da carga, que pertence a uma indústria gaúcha.
O procedimento legal para envio do carregamento pela empresa não foi executado por causa do alagamento do terminal e da pista do aeroporto. Assim, o arsenal permaneceu no local por dias após as chuvas intensas na capital.
O serviço de inteligência da Polícia Federal (PF) identificou que uma das principais facções criminosas do RS planejava invadir o aeroporto para levar as armas, entre elas, fuzis e metralhadoras.
Um agente que participou da ação revelou à Gazeta do Povo que foi montada uma força-tarefa, com policiais de diversas regiões do Brasil. No dia 9 de maio, após um cerco nas imediações, o armamento foi removido e levado a um ponto seguro. O aeroporto, debaixo d´água, segue sob o comando da PF.
Maior abrigo do Rio Grande do Sul divide facções rivais alojadas
A principal suspeita de briga entre facções para controle de abrigos foi registrada em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre. Na sede da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) onde está o maior alojamento do Rio Grande do Sul com cerca de 6 mil pessoas, o risco de confronto envolveu dois grupos rivais: Manos e Bala na Cara.
A Polícia Civil do RS afirmou que, conforme o acampamento foi se formando, os rivais que chegavam para ser abrigados eram separados pelo risco de assassinatos dentro do alojamento. No segundo dia, houve a separação completa dos grupos divididos em áreas com uma distância de 300 metros, além da vigilância policial.
A reitoria da instituição de ensino, que serve como moradia aos desabrigados, acredita que os faccionados abrigados não usarão a estrutura para uma disputa de poder ou de domínio “porque o local serve como abrigo aos que tanto necessitam”.
Na semana passada, o governador Eduardo Leite (PSDB) afirmou à Gazeta do Povo que o estado não cogita pedir ao governo federal uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO) com o empenho das Forças Armadas na segurança pública. A responsabilidade permanece com o estado que pode ter o reforço de cerca de mil policiais da Brigada Militar (BM) que foram para a reserva nos últimos dez anos - 300 já foram acionados nos últimos dia. Além disso, 260 policiais civis aposentados foram convocados.
Crimes sexuais em abrigos e reforço no patrulhamento
O secretário da Segurança Pública, Sandro Caron, justifica que com cerca de 77 mil pessoas em abrigos, a possibilidade de crimes aumenta nos alojamentos. “Nós tivemos desde o início da calamidade 83 prisões, sendo que 30 foram em abrigos. Foram presos 12 pessoas por crimes sexuais [em denúncias de estupros e abusos de mulheres e crianças]. Em todos os casos de crime sexual, o autor foi identificado e responsabilizados”, assegura.
Caron lembrou que o estado lançou uma campanha para receber denúncias dos crimes em virtuais da tragédia climática. “Se a pessoa tem conhecimento de um crime, mesmo não sendo a vítima, pode denunciar pelo 190 ou procurar os agentes durante o patrulhamento. Se for a vítima, deve registrar um Boletim de ocorrência (BO)”.
Caron reitera que não há efetivo 24 horas por dia em todos os abrigos, mas que nos principais há policiamento constante. Para isso, o contingente da segurança recebeu o apoio de 700 homens e mulheres de farda vindos de outros estados e 200 integrantes da Força Nacional.
“Os abrigos que não têm policiais o tempo todo recebem rondas durante o dia e à noite. Não há no Rio Grande do Sul abrigos dominados por facções. Nós vamos garantir a segurança e vamos prender todos que tentarem constranger ou criar qualquer tipo de situação criminal nos abrigos”, completa
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