Para o Instituto Brasileiro de Compliance, sigilo de documentos é antiético e reprovável, incompatível com ambiente democrático.| Foto: Franz Bachinger/Pixabay
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Documentos oficiais em condição de sigilo, secretos e até ultrassecretos se tornaram prática comum no poder público brasileiro, alertam órgãos ligados ao direito de acesso à informação e à transparência. Boa parte dos estados brasileiros ativou o chamado rol de informações sigilosas nos últimos dois anos - e que estão em processo de renovação em 2024.

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A condição é prevista pela Constituição Federal e amparada pela Lei de Acesso à Informação (LAI) em processos que precisam ser revistos anualmente, mas podem exarcebar arbitrariedades.

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“Não entendo isso como ilegal, mas é absolutamente antiético e reprovável do ponto de vista moral. Quando você decreta o sigilo, é segredo, é esconder. Como é que isso pode ser compatível com o ambiente democrático, republicano e sobretudo com os princípios que regem o ato administrativo da moralidade pública e da transparência?”, argumenta o presidente do Instituto Brasileiro de Compliance (IBC), o advogado James Walker Junior. Conforme defende ele, o hábito de decretar sigilo no setor público, seja em que esfera for, é incompatível com o ato administrativo que exige a transparência.

Nas últimas semanas, o tema foi evidenciado no Paraná depois que a Secretaria de Estado da Educação do governo de Carlos Massa Ratinho Junior (PSD) decretou sigilo de cinco anos sobre documentos específicos da pasta. "Não vale para tudo", lembrou o diretor-geral da pasta, João Luiz Giona Jr., à Gazeta do Povo, mas na prática muita coisa estava lá, protegida por meia década ou até que um processo de publicação de um edital, por exemplo, fosse concluído.

No ano anterior, segundo o mesmo diretor, o rol era ainda mais abrangente e previa sigilo de 100 anos, condição analisada pela própria lei como ilegal. “Não tem nada de transparência você decretar um segredo de 100 anos. Do ponto de vista do compliance, que trata da gestão de integridade submetendo as pessoas jurídicas, sejam elas de direito público ou privado às normas e cumprimento dos deveres, não me parece que seja minimamente válida como regra de integridade a decretação da conduta de um sigilo. Isso é o avesso do que se espera da moralidade pública”, opina Walker Junior.

No caso do Paraná, depois da polêmica, o secretário da Educação, Roni Miranda, anunciou a retirada do sigilo sobre os documentos da pasta, no último dia 14. A Controladoria-Geral do Estado (CGE) também anunciou que o governo fará uma revisão completa, e de rotina, apara reavaliar sigilos de pastas governamentais.

Rondônia decreta sigilo nas ações de governador e vice até fim do mandato

Em fevereiro, outro fato chamou a atenção de instituições ligadas ao direito do acesso à informação e a transparência na administração pública. O vice-governador de Rondônia, Sérgio Gonçalves da Silva (União Brasil), no cargo de governador em exercício, assinou um decreto que determina sigilo sobre informações de interesse público em ações desenvolvidas por ele e pelo governador, Marcos Rocha (União Brasil).

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O Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas alertou que a regra fere o princípio constitucional da publicidade na administração pública e é contrária à LAI. O Decreto 28.891/2024 considera sigilo de grau reservado sobre:

  • dados de visitantes no gabinete do governador do estado e em residências oficiais
  • informações referentes a viagens do governador, do vice e de seus familiares
  • despesas com alimentação, saúde e moradia.

A restrição de acesso é válida em Rondônia até o fim do mandato - 31 de dezembro de 2026. Para o Transparência Brasil, o sigilo “compromete o acompanhamento do poder público pela sociedade”. O órgão lembrou que os registros de visitantes no gabinete do governador e em residências oficiais são informações que revelam parte importante das atividades do mais alto agente público do estado e, portanto, são de divulgação obrigatória previstas pela lei.

“A publicação delas não representa risco à segurança da sociedade e do Estado, exceto em casos pontuais cuja classificação sob sigilo deve ser feita individualmente. Cabe registrar que dois dos enunciados publicados no início de 2023 pela Controladoria-Geral da União (CGU), órgão responsável pela implementação da LAI no executivo federal e referência para outros níveis de governo, reconhecem que as informações devem ser públicas”, aponta o Transparência Brasil.

O presidente do Instituto Brasileiro de Compliance reitera a crítica à ação do governo estadual. “É incompatível, inclusive, com a lei de lavagem de dinheiro, porque essas pessoas são as que a lei declara como politicamente expostas (as PPEs). Se elas são politicamente expostas, devem estar o tempo todo sob o olhar da sociedade, da moralidade pública", ponderou.

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Para o advogado, essas iniciativas precisam ser acompanhadas para observar uma possível evolução patrimonial. "Isso diz respeito ao interesse público. E meu olhar de advogado, de professor: quem decreta sigilo sobre essas situações está mal intencionado, pensando em escamotear alguma coisa que eventualmente esteja contrário à moralidade pública”, diz.

Na avaliação do diretor de projetos do Transparência Brasil, Cristiano Pavini, a condição pode ser avaliada como “absurda”, pois o ente precisa justificar com o motivo para o decreto. “As visitas que têm caráter oficial devem ser públicas por natureza. Todas essas ações são prejudiciais para o exercício do controle social. É necessário que órgãos de controle externo em todo o Brasil, como o Ministério Público e Tribunais de Contas, atuem para barrar isso, sob risco de um movimento ainda mais forte de retrocesso”, avalia.

O governo de Rondônia não respondeu aos questionamentos feitos pela reportagem da Gazeta do Povo.

Em São Paulo, lista de agentes que podem classificar documentos ultrassecretos é ampliada

No estado de São Paulo, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) ampliou por meio de decreto, a relação de agentes que podem classificar documentos como ultrassecretos, com sigilo que pode alcançar 25 anos, renováveis por igual período. Até então, essa condição era assegurada ao governador, vice-governador, secretários, controlador-geral e procurador-geral. Agora se estende a agentes públicos em cargos ou função de coordenadorias ou hierarquias equivalentes ou superiores.

“Ano passado, o Transparência Brasil fez um levantamento e existiam, somente em cargos de coordenadoria no governo de São Paulo, em torno de 90 pessoas, ou seja, são 90 pessoas a mais, pelo menos, que podem identificar documentos como ultrassecretos. Isso não pode”, contesta o coordenador de projetos do órgão.

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Para o Transparência Brasil, o aumento na quantidade de pessoas autorizadas a restringir o acesso a informações representa um risco, fragilizando mecanismos para garantir a transparência. A Controladoria-Geral do Estado (CGE) alegava, na época, que havia um robusto processo de supervisão para classificação de informações antes de serem caracterizadas como secretas ou sigilosas.

A reportagem da Gazeta do Povo pediu esclarecimentos sobre a medida ao governo de São Paulo, mas até a publicação desta reportagem não obteve retorno. No mês passado, o governador paulista defendeu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que o decreto tem fundamento jurídico, com respaldo à simetria e que foi observada a estrutura da lei federal. A manifestação foi em reposta aos questionamentos do ministro Gilmar Mendes.

O sigilo do sigilo: rol de documentos secretos é difícil de rastrear

Em casos de especificação de quais documentos estão em sigilo ou considerados secretos e ultrassecretos consultados pela reportagem da Gazeta do Povo, as informações não estão explícitas nos portais da transparência e, quando aparecem, costumam estar identificados em ícones difíceis de serem localizados como “informações classificadas; rol de informações sigilosas; documentos secretos ou ainda como documentos classificados ou desclassificados”.

A legislação determina que entes públicos caracterizem e informem que tipos de documentos estão nessas condições e os motivos pelos quais foram denominados assim. “Dizer que um governo vai esconder uma iniciativa por 100 anos é porque deve ser algo tão imoral que não pode ser visto hoje, só quando todos estiverem mortos”, completa Walker Junior.

No Paraná, por exemplo, há classificação do rol de informações sigilosas para praticamente todas as secretarias de estado nos últimos anos. Para o diretor-geral da Seed no estado, a prática é comum e está amparada por lei.

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O mesmo ocorre em estados como São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rondônia. A regra do sigilo tem se estendido para as mais diferentes pastas de governos e poderes - incluindo Legislativo e Judiciário, avaliam o Transparência Brasil e o Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas.

Sigilo deveria ser exceção, mas está se tornando regra, alerta Transparência Brasil

A instituição que atua pela transparência na gestão pública no país, o Transparência Brasil, avaliou que o deveria ser exceção tem se transformado em regra, o que é preocupante pelo crescimento na escala de sigilos, secretos e ultrassecretos observada nos últimos anos.

A entidade ponderou que o artigo 5º da Constituição, em seu artigo 32, dá garantias de todos terem informações sobre os órgãos públicos e prevê exceções, para quando o sigilo se revela imprescindível à segurança da sociedade e do estado. Porém, para o Transparência Brasil, documentos secretos - que seriam mais típicos a setores ligados à segurança pública, em situações que possam ter reflexo direto na integridade física e proteção - estendem-se indiscriminadamente a outras pastas em um amplo leque, no que configuraria má interpretação das leis de Acesso à Informação (LAI) e Geral da Proteção de Dados (LGPD).

A capacidade dos estados de decretar sigilo sobre documentos, pontua o coordenador de projetos do Transparência Brasil, é um tema complexo e depende da análise de fatores. “O sigilo por si só não é absurdo nem ilegal, há casos que precisam de sigilos, informações de caráter pessoal, sem interesse público, como um prontuário médico", exemplifica Pavini.

Também não deve ser documento de acesso público quando há risco à soberania nacional, à segurança pública e aos governantes, em casos de documentos preparatórios. "Mas temos observado uma interpretação equivocada e enviesada da legislação para se extrapolar, para tornar o sigilo uma espécie de regra e não mais de uma exceção, como determina a lei”, diz ele.

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Entre os itens que precisariam ser avaliados com tecnicalidade e conhecimento específico pelos gestores ao se decretar sigilo ou definir uma informação como secreta estão a natureza do documento, o contexto da classificação e os princípios constitucionais.

Critérios estabelecidos pela LAI para o sigilo de informações na administração pública

A LAI (12.527/2011), estabelece o direito fundamental de acesso à informação pública, garantindo a transparência e o controle social. Ela prevê, ainda, a possibilidade de sigilo de informações, mas apenas em casos específicos e com fundamento em razões de interesse público, como a segurança da sociedade e do Estado, a proteção da intimidade, o sigilo comercial e a defesa nacional em consonância com a Constituição Federal.

Cabe aos estados, por meio de leis e decretos, regulamentar o regime de sigilo de documentos públicos em seu âmbito. “No entanto, essa regulamentação deve estar em consonância com os princípios e diretrizes da LAI e da Constituição. Estados não podem criar sigilo absoluto ou arbitrário e a classificação de um documento como sigiloso deve ser fundamentada em critérios objetivos e razoáveis, considerando o potencial dano ao interesse público caso a informação seja divulgada”, esclarece.

Ainda segundo Pavini, o Transparência Brasil está atento e preocupado com os retrocessos recentes e tem identificado uma interpretação equivocada, com a utilização da LGPD como pretexto para ampliação de sigilos. “A LAI e a LGPD não são conflituosas, elas são complementares”, afirma.

Para o Transparência Brasil, o sigilo não é um direito do estado, mas uma exceção ao princípio da transparência. “A presunção é sempre pela publicidade da informação, e o sigilo só deve ser aplicado em casos excepcionais e devidamente justificados.          Mesmo em casos de sigilo, o cidadão ainda tem o direito de requerer a revisão da classificação. Vemos com muita tensão essa onda de retrocesso em todos os poderes e em todos os níveis”, descreve o órgão.

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O que prevê a Lei de Acesso à Informação em documentos sigilosos

  • 5 anos (classificação reservada);
  • 15 anos (classificação secreta);
  • 25 anos (classificação ultrassecreta)
Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]