• Carregando...
Jogo do bicho anotação
Da anotação ao jogo eletrônico: bicho moderniza operações e mantém estrutura mafiosa| Foto: Arquivo/Gazeta do Povo

A prisão do contraventor Rogério de Andrade no Rio de Janeiro, na última semana de outubro, é considerada a cena final da guerra pelo controle do clã do bicheiro Castor de Andrade, que morreu em 1997. No entanto, a estrutura controlada pelo sobrinho do principal nome da antiga cúpula do jogo do bicho segue intacta com a manutenção do poder que estende os tentáculos da contravenção pela polícia do Rio.

Além disso, a tradicional anotação do bicho evoluiu para a exploração das máquinas de caça-níqueis, cassinos clandestinos e novos meios de arrecadação com o uso da tecnologia, o que fez o império Andrade crescer nas últimas décadas em meio ao conflito interno sangrento. No último dia 29, Rogério de Andrade foi preso na Barra da Tijuca pelo homicídio qualificado de Fernando Iggnácio, genro do patriarca da família, denunciado como mandante do crime em novembro de 2020, em um heliporto no Rio. O rival de Rogério era casado com Cármen Lúcia, filha de Castor, e morreu após a chegada do helicóptero em uma emboscada no estacionamento do local.

A operação “Último ato” do Grupo de Atuação Especializado no Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ), cumpriu o mandado de prisão contra o contraventor após a apresentação de novas provas na ação penal, que foi trancada pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) em fevereiro de 2022. Além dele, um homem suspeito do monitoramento de Iggnácio foi detido pelas trocas de mensagens com o mandante do crime, conforme as investigações.

“O Rogério de Andrade está preso, mas o controle da máquina continua. As pessoas que trabalham para ele, inclusive policiais, continuam leais”

Professor Michel Misse, do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ

Fundador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o professor de sociologia Michel Misse lembra que a guerra pelo espólio de Castor começou em 1998, no ano seguinte ao infarto fulminante sofrido pelo patriarca. O filho do contraventor, Paulo de Andrade, foi assassinado aos 47 anos e apesar das suspeitas, o crime não foi solucionado.

“O Castor já tinha conversado e achava que a pessoa com melhor capacidade para conduzir os negócios era o sobrinho. O filho não aceitou a decisão do pai, assim como o genro que também contestou. A coisa estava nesse pé, quando ele morreu após um ataque no coração”, recorda Misse. “Depois da morte do Paulo, o conflito entre Rogério de Andrade e Fernando Iggnácio se acentuou. Vários seguranças, ex-policiais militares que trabalhavam para o jogo do bicho, também foram assassinados”, completa.

Após décadas de guerra, Rogério conseguiu permanecer com o espólio do clã e modernizar as operações, mas pagou um alto preço pela escalada da violência pelo poder. Em 2010, o carro do contraventor explodiu na avenida das Américas no Rio em um atentado com explosivo instalado próximo ao banco do motorista. O filho do bicheiro de 17 anos estava na direção do veículo e morreu no local. Rogério teve o rosto desfigurado, passou por plásticas e sobreviveu ao atentado.

O professor evidencia que os negócios conduzidos pelo clã continuam. “O Rogério de Andrade está preso, mas o controle da máquina continua. As pessoas que trabalham para ele, inclusive policiais, continuam leais”, ressalta.

Jogo do bicho: máfia clássica, corrupção policial e status social

A guerra no Rio pelo controle do jogo do bicho foi uma marca da contravenção carioca. De acordo com o professor da UFRJ, a cúpula formada pelos principais “banqueiros do bicho”, na década 1970, dividiu a exploração da cidade por zonas, o que pacificou os conflitos até a sucessão aos herdeiros das famílias. “O Castor não chegava a ser o capo [expressão italiana usada para os chefes da máfia], mas era o mais antigo e o mais respeitado do grupo. E essa estrutura funciona até hoje”, explica Misse.

Na avaliação dele, a estrutura montada por Castor está “intacta” nas áreas dominadas pelo clã Andrade, que modernizou as operações do jogo bicho com anotações eletrônicas e emissão de recibo aos apostadores, além da expansão dos negócios com alto investimentos nos caças-níqueis, principalmente na zona oeste do Rio de Janeiro.

O professor da UFRJ compara a divisão das áreas pela antiga cúpula - em processo de transição para os herdeiros dos clãs - com a estrutura da “máfia clássica”, de origem siciliana, com objetivo de manter o controle do jogo do bicho entre as famílias e, se necessário, ordenar ameaças e assassinatos, em caso de violação das regras.

“As disputas por territórios foram praticamente extintas com o surgimento da cúpula, mas nos últimos anos, com problemas de sucessão, mortes e as brigas intrafamiliares, a disputa por territórios recomeçou, primeiro dentro das famílias, e eventualmente entre as famílias.”

Ainda de acordo com Misse, a corrupção policial é outra característica mafiosa e teve origem no jogo do bicho carioca, sendo que a proteção em favor das organizações criminosas continua existindo e passou a ser usada por facções e milicianos no Rio. “Fica muito difícil para o policial honesto, que quer agir com competência para combater o crime, porque ele e a família ficam ameaçados até por outros colegas”, lamenta.

Ele aponta que foi o jogo do bicho que começou a corromper a polícia no Rio de Janeiro. “Por isso, a atuação do Gaeco e do Ministério Público tem que ser elogiada. Contra tudo e contra todos, eles trabalham na tentativa de colocar um fim na impunidade”, enaltece ele. Em março deste ano, o MP-RJ denunciou à Justiça 31 pessoas pelo crime de organização criminosa, entre eles, 18 policiais militares da ativa e um policial penal que integravam o grupo comandado por Rogério de Andrade.

“O jogo do bicho foi o que começou a corromper a polícia no Rio de Janeiro”.

Professor Michel Misse, do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ

O contraventor também assumiu o papel de patrono da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, posto que foi ocupado por Castor de Andrade, que levou a agremiação ao título do carnaval do Rio por cinco vezes. Os “banqueiros do bicho” assumiram a gestão de escolas de samba cariocas com alto investimento na festa popular, como forma de legitimar na sociedade o poder paralelo da contravenção.

A Gazeta do Povo entrou em contato com o MP-RJ, que respondeu que os promotores responsáveis pelas investigações contra Rogério de Andrade não se manifestam sobre os processos em entrevistas à imprensa. 

Relação com milícias e com matadores de aluguel no Rio de Janeiro         

O professor Michel Misse afirma que existe a suspeita da ligação do jogo do bicho com as milícias no período de origem dos grupos paramilitares, formados inicialmente por ex-policiais no Rio de Janeiro, com papel na disputa pelo controle da exploração das máquinas caças-níqueis na zona oeste carioca.

“Depois, as milícias perderam essa característica se transformando em grupos armados como as facções, sem muitas diferenças, vivendo de extorsão e até mesmo de tráfico [de drogas]. Essa relação com o bicho ainda é apurada”, pondera.

Misse também recorda das ligações dos bicheiros com os matadores de aluguel no Rio de Janeiro, entre eles, Ronnie Lessa, condenado pelo assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes em 2018.

Lessa perdeu uma perna após a explosão de uma bomba instalada em seu veículo em 2009, sete meses antes do atentado que matou o filho de Rogério de Andrade. O fato em comum teria aproximado o matador de aluguel e o contraventor.

“Lessa, Adriano da Nóbrega e outros eram seguranças do jogo do bicho. Depois, ganharam controle sobre algumas áreas de caça-níqueis, enriqueceram e passaram a oferecer proteção de maneira autônoma, além de serem responsáveis pela criação do Escritório do Crime.”

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]