Com a derrubada do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o governo de Santa Catarina, autor da ação julgada na Corte, aposta no diálogo com indígenas para evitar o desalojamento de proprietários rurais. Segundo cálculos da Procuradoria-Geral do Estado (PGE), a decisão afeta cerca de 2 mil famílias, que vivem, principalmente, da agricultura e estão localizadas na região da Grande Florianópolis, no oeste catarinense e no Alto Vale do Itajaí.
Parte dessas áreas, que atualmente estão demarcadas como terra indígena ou em processo de demarcação, foi cedida ou vendida pelo governo estadual a agricultores no século passado. E são reivindicadas pelos povos originários. “Nós entendemos que isso [derrubada do marco temporal] vai causar prejuízos enormes não apenas econômicos, mas, principalmente, sociais. São pessoas que vão ficar sem as suas propriedades e que vivem dessas propriedades. No total, calcula-se que [o impacto] pode chegar a 2 mil famílias, de pequenas e médias propriedades”, explica o procurador-geral do Estado (PGE), Márcio Vicari.
O processo de diálogo do governo de Santa Catarina com os povos originários começou em janeiro, antes de o marco temporal entrar na pauta do STF. De acordo com Vicari, na época, a PGE formulou uma petição ao STF pedindo abertura de uma mesa de negociações com os indígenas, que foi atendida pelo ministro Edson Fachin. A conversa foi mediada pela Advocacia-Geral da União (AGU), mas não avançou.
O governo acenou com compensações aos indígenas, principalmente com equipamentos urbanos e infraestrutura. Segundo Vacari, o grupo teria solicitado auxílio na construção de igrejas, escolas, casas, melhorias de estradas e equipamentos sanitários. “Mas o estado de Santa Catarina continua com a intenção de celebrar um ajuste, caso isso seja possível”, informou o PGE.
Líderes indígenas procurados pela reportagem da Gazeta do Povo afirmaram que, desde a derrubada do marco temporal até a noite de terça-feira (26), o governo do Estado não tinha feito contato para iniciar esses diálogos.
Em outra frente, a Procuradoria-Geral do Estado “aguardará a publicação do acórdão dos votos dos ministros para analisar os próximos passos jurídicos a serem tomados sobre o tema”.
Por nove votos a dois, o Supremo decidiu, na última quarta-feira (21), não acatar a tese de que povos originários têm direito apenas às terras que ocupavam ou estavam em disputa na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. A medida afeta três áreas indígenas em Santa Catarina, segundo a PGE: Ibirama-La Klãnõ, que fica nos municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, José Boiteux e Vitor Meireles, no Alto Vale do Itajaí; Morro dos Cavalos, em Palhoça, na Grande Florianópolis; e Araçá, em Cunha Porã e Saudades, no oeste catarinense.
“Vitória do povo indígena”, diz líder do povo Xokleng
A terra indígena alvo do marco temporal é a Ibirama-La Klãnõ, no Alto Vale do Itajaí. Lá, vivem cerca de 2,8 mil pessoas, a maioria da etnia Xokleng, mas há também indígenas Guarani e Kaingang.
Para Tucun Gakran, líder e morador da Ibirama-La Klãnõ, a decisão do STF representa “uma vitória para o povo que, nos últimos 500 anos, foi injustiçado”. No entanto, Tucun não esconde a apreensão com o futuro da terra indígena e a preocupação com aqueles que também ocupam o local. “A gente sabe que tem o outro lado, o dos ruralistas e dos próprios agricultores”, afirmou.
“Cada um tem direito. A gente não quer tirar o direito dos colonos também, porque a maioria ocupou a terra de boa-fé. O governo [de Santa Catarina] vendeu para eles e eles compraram. A gente não é contra o colono, a gente quer o que é nosso e é por isso que nós lutamos, porque sabemos que aquilo é nosso”, completou o líder indígena.
A região tem cerca de 37 mil hectares. Atualmente, os indígenas ocupam 14 mil hectares, segundo Tucun, e os agricultores, os outros 23 mil. “Na prática, esse processo [envolvendo a terra Ibirama-La Klãnõ] não vai desalojar ninguém. Mas, na sequência, temos uma área que é adjacente a essa e que envolve cerca de 300 pequenas propriedades, e aplicada a tese [do marco temporal] essas pessoas teriam que sair, mas não imediatamente”, explica o procurador-geral catarinense.
Os ministros do STF concordaram, durante o julgamento, sobre a necessidade de indenizar os não-indígenas que, de boa-fé, ocuparam as terras. No entanto, há divergências sobre como fazer isso.
- Edson Fachin, Cármen Lúcia e Rosa Weber entendem que o direito à indenização se limita às benfeitorias.
- Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e Dias Toffoli citam a necessidade do direito à indenização do valor da terra nua, com ressarcimento prévio.
- Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso entendem que o direito à indenização deve contemplar as benfeitorias e a terra nua, estabelecendo que a aferição da indenização deve ser feita via procedimento judicial ou extrajudicial, não no processo de demarcação. Para eles, não há necessidade de indenização em casos já pacificados, com exceção dos judicializados e em andamento (esse último ponto também é apoiado por Toffoli).
Nesta quarta-feira (27), o STF decidirá se o caso da terra indígena de SC tem repercussão geral, ou seja, se será válido para 226 casos semelhantes que estavam suspensos à espera dessa definição.
Mas a expectativa dos indígenas é grande e, por isso, já comemorada não apenas pelo povo da Ibirama-La Klãnõ. “O Brasil agora está aliviado, a gente vai ter essa felicidade de estar respirando o ar puro”, desabafou Lazaro Kalmem, líder de uma das 11 aldeias que integram uma terra indígena no oeste de Santa Catarina.
Setores econômicos de SC apontam que decisão a favor dos indígenas fragiliza segurança jurídica
Assim que o Supremo Tribunal Federal decidiu derrubar a tese do marco temporal, a Federação das Indústrias de Santa Catarina (Fiesc) manifestou preocupação com o resultado do julgamento. Para a entidade, a medida “fragiliza nossa segurança jurídica trazendo intranquilidade ao campo e à cidade”.
Em nota, a Fiesc disse, ainda, que o STF “desconsidera as diferenças regionais brasileiras” com a decisão. “No caso de Santa Catarina, onde vivenciamos situações especialmente consolidadas em virtude de nossa colonização, é fundamental a modulação na aplicação da decisão, sob pena de sérias consequências econômicas e sociais”, defendeu.
A Fiesc afirmou que trabalha, agora, para que a matéria seja alterada no Legislativo, já que o tema também está em análise no Congresso Nacional. A proposta - que entende que para uma área ser considerada terra indígena precisa estar ocupada até a data da promulgação da Constituição federal, de 5 de outubro de 1988 - foi aprovada pela Câmara dos Deputados em maio deste ano, após tramitar por mais de 15 anos.
Agora, o projeto de lei está no Senado, onde já foi aprovado na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária e espera votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Em seguida, segue para o plenário.
O que é o marco temporal
O marco temporal é uma tese jurídica que defende que os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988. Ela se contrapõe à teoria do indigenato, segundo a qual o direito dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas é anterior à criação do Estado brasileiro, cabendo a este apenas demarcar e declarar os limites territoriais.
O julgamento sobre o caso, que começou em agosto de 2021, é um dos maiores da história do STF.
Ele se estendeu por 11 sessões, sendo duas dedicadas exclusivamente a 38 manifestações das partes do processo, de terceiros interessados, do advogado-geral da União e do procurador-geral da República.
O caso que originou o recurso está relacionado a um pedido do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) de reintegração de posse de uma área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás, declarada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) como de tradicional ocupação indígena, a Terra Ibirama-La Klãnõ. No recurso ao STF, a Funai contesta decisão do Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4), para quem não foi demonstrado que as terras seriam tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e confirmou a sentença em que fora determinada a reintegração de posse.
Na Suprema Corte, no entanto, prevaleceu o entendimento do ministro Edson Fachin (relator), que deu provimento ao recurso da Funai. Com isso, foi anulada a decisão do TRF-4 e derrubada a tese do marco temporal.
Como votaram os ministros do STF
Votos contra a tese:
- Luiz Edson Fachin (relator)
- Alexandre de Moraes
- Luís Roberto Barroso
- Cármen Lúcia
- Cristiano Zanin
- Dias Toffoli
- Luiz Fux
- Gilmar Mendes
- Rosa Weber
Votos a favor da tese:
- André Mendonça
- Nunes Marques
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