Ao longo de 2024, o benefício da tarifa zero no transporte público avançou para 117 cidades brasileiras, atingindo um total de 5,6 milhões de pessoas, um crescimento de 10% em relação ao ano anterior (5,1 milhões). Entretanto, a iniciativa pode sofrer um grande revés, com o anúncio de que a passagem voltaria a ser cobrada no próximo dia 17 em Caucaia (CE), que tem 355 mil habitantes, justamente a maior cidade brasileira a oferecer ônibus de graça.
A transição política na prefeitura de Caucaia entre dois grupos rivais acende um alerta quanto à manutenção da tarifa zero nas grandes cidades. A Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbano (NTU), que tem defendido a gratuidade no transporte coletivo, ressalta a necessidade do compromisso do gestor público com a continuidade do serviço, que é essencial, e a garantia de verba para cumprir com as obrigações.
“Caucaia mostrou ganhos sociais da medida, com opção maior de lazer, acesso à saúde e à educação. Nesse aspecto os benefícios são bastante concretos. Mas, de qualquer jeito, na visão da NTU a gente recomenda um mínimo de responsabilidade para o gestor público avançar, para que esteja ciente de que vai ter aumento de demanda e que isso vai obrigar aumento da oferta do serviço que vai gerar um aumento de custo”, afirma o diretor da NTU Marcos Bicalho. Ele destaca que a contabilidade deve ser feita não sobre o custo atual do serviço, mas quanto vai custar.
O município cearense, que integra a Região Metropolitana de Fortaleza, implantou a medida em 2021, em meio à pandemia de coronavírus. Bicalho conta que a gratuidade elevou a demanda em 400%, mas o serviço ficou equilibrado com aumento de 70% na oferta de ônibus.
“Conseguiram assim melhorar o desempenho e a produtividade do serviço. Houve mudanças de hábitos. Ao tirar o custo da passagem do bolso das pessoas, elas gastam mais no comércio, outras atividades econômicas se beneficiam”, pondera.
Agora, por causa da transição política em Caucaia, o futuro do programa batizado como “Bora de graça” ainda é incerto. O Ministério Público do Ceará afirmou à Gazeta do Povo que iria se reunir com a equipe de transição e acompanhar as discussões sobre o tema. A gratuidade da tarifa está garantida até 31 de dezembro, após a Promotoria de Justiça de Caucaia intermediar um plano de pagamento de parcelas atrasadas da prefeitura para a empresa concessionária.
A maior parte das cidades brasileiras com tarifa zero no transporte público tem menos de 50 mil habitantes.
Outra cidade que está encerrando a tarifa zero é Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre. O benefício foi implantado em caráter temporário em maio de 2024, depois das cheias históricas que afetaram a região. A passagem será gratuita até 31 de dezembro, após duas prorrogações, em agosto e novembro. A cidade tem 347,6 mil habitantes e programou uma consulta pública entre 9 e 15 de dezembro para recolher críticas, propostas e soluções.
Das 117 cidades com tarifa gratuita no transporte coletivo atualmente, a maioria está localizada nas regiões Sudeste (80) e Sul (26). A maior parte delas, 84, tem menos de 50 mil habitantes. Em relação à ideologia do gestor, não há nenhuma dominante: levantamentos da NTU e pesquisadores independentes mostram adesão de prefeitos de direita, de centro e de esquerda.
Na pesquisa “Tarifa zero nas cidades do Brasil”, a NTU divulga as vantagens apontadas pelas prefeituras que adotaram essa política pública, como aumento nas vendas do comércio local, redução no número de acidentes, redução nas desmarcações de consultas médicas e maior frequência a espaços de lazer.
Curitiba aponta alto custo como barreira à gratuidade universal
Em Curitiba (PR), por outro lado, não há previsão de tarifa gratuita universal. O prefeito eleito, Eduardo Pimentel (PSD), atual vice-prefeito, pretende dar isenção na passagem de ônibus para pessoas que procuram emprego, com alguns condicionantes de renda e desde que seja para entrevistas agendadas pelo Sine (Sistema Nacional de Emprego).
O novo contrato de concessão do transporte coletivo de Curitiba, previsto para ser assinado no segundo semestre de 2025, “contempla a redução do valor da tarifa”, informou a assessoria de imprensa da prefeitura. Outra proposta da nova gestão é a meia tarifa aos domingos e feriados.
Segundo a prefeitura de Curitiba, a implantação de tarifa zero poderia consumir de R$ 1 bilhão a R$ 2,5 bilhões ao ano de aporte do município, ao se considerar o aumento de demanda que ocorre com a eliminação da catraca. O orçamento do município é estimado em 14,5 bilhões em 2025.
O pesquisador Daniel Santini, autor do livro “Sem catraca: da utopia à realidade da tarifa zero”, lançado em setembro de 2024, defende uma mudança estrutural no transporte da capital paranaense durante a nova concessão que será feita em 2025. “Antes tida como cidade modelo em termos de mobilidade coletiva, agora está em situação muito lamentável, com as tarifas mais altas do Brasil e declínio no uso do transporte coletivo”, destaca.
Para ele, a tarifa zero poderia ser uma inversão de rumo, para impedir o sucateamento do sistema. “E de onde vem o dinheiro para isso? Há necessidade de rever as obras de caráter rodoviário, que beneficiam só carros e motos”, opina.
A prefeitura de Curitiba destaca que a maioria das cidades que implantaram a tarifa zero são pequenas, com poucas linhas de ônibus e sem integração do modal. “Curitiba tem o transporte coletivo mais integrado do país, com conexão direta com 12 municípios vizinhos. Dos 15 milhões de passageiros por mês que utilizam o transporte de Curitiba, 3,2 milhões são da Região Metropolitana, que entram no sistema sem ter que pagar uma nova passagem”, diz a nota da assessoria.
Outro obstáculo apontado pela prefeitura de Curitiba é a ausência de fontes de financiamento para custear a implantação da tarifa zero, a qual “implicaria na necessidade de aumento de gastos também com a ampliação da frota, a própria gestão do transporte coletivo e de recursos humanos, com contratação de agentes, motoristas e fiscais”. Em dezembro de 2023, a Comissão Especial do Transporte da Câmara Municipal de Curitiba (CMC) concluiu que a gratuidade gera custos inviáveis e apontou para a necessidade de outras fontes de custeio.
Santini concorda que é um grande desafio implantar a tarifa zero no transporte público. Ele aponta que municípios com até 500 mil municípios conseguem ser bem atendidos com cerca de 200 veículos, mas para populações maiores a necessidade de ônibus se eleva exponencialmente. “Por outro lado, há orçamento maior, equipe técnica maior, então a chance de buscar uma boa solução é maior também”, pondera.
Congresso discute mudanças estruturais no transporte público
A depender da movimentação no Congresso, os municípios brasileiros podem ganhar receitas extras para subsidiar a gratuidade da tarifa. O tema é discutido desde a Emenda Constitucional n.º 90/2015, quando o transporte público se tornou um direito social. Dois anos depois, movimentos pelo direito ao transporte começaram a articular o projeto de um Sistema Único de Mobilidade (SUM), semelhante ao SUS, ideia que foi encampada pelo Instituto de Defesa do Consumidor (Idec).
As propostas começaram a ganhar mais visibilidade após a pandemia de coronavírus ter evidenciado a crise do setor. O SUM está previsto na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 25/2023, em tramitação na Câmara dos Deputados.
“A integração dos três níveis de poder tem que ser feita e a proposta do SUM é justamente isso, estruturar a gestão pública para a participação dos três entes: União, estados e municípios, de forma que se consiga implementar com mais eficácia e mais qualidade a política de transporte urbano”, avalia Marcos Bicalho, diretor da NTU.
Independentemente do SUM, o novo marco legal para o transporte coletivo urbano (PL nº 3.278/21) foi aprovado nesta terça-feira (10) em caráter terminativo pela Comissão de Infraestrutura do Senado. Agora o projeto segue para apreciação na Câmara dos Deputados.
A proposta prevê fontes de custeio extratarifárias, como 60% dos recursos da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide Combustível), que incide sobre a importação e comercialização de petróleo, gás natural e álcool etílico combustível. O projeto também prevê maior transparência nos dados do transporte público.
O pesquisador Daniel Santini pontua que projetos como esse avançam até por favorecer a atuação das empresas. “Estamos vendo a falência da remuneração por passageiro. As contas não fecham, pois as premissas estão distorcidas. Se eu prevejo um custo por passageiro, quando a demanda cai, precisa aumentar a tarifa, ou reduzir a frota, e isso prejudica ainda mais o usuário”, critica.
Com a tarifa zero, o poder público assume a responsabilidade integral pelo pagamento do serviço, o que traz continuidade. “Os empresários, a partir do momento que podem prever a receita, que não varia, podem assumir financiamento e renovar a frota, além de outros investimentos para melhor o serviço”, exemplifica.
O novo marco legal também prevê operações estruturadas de financiamento para o transporte público, aplicações no mercado de capitais e fundos e programas voltados à sustentabilidade e aos efeitos das mudanças climáticas. Para Santini, o momento é de pensar as cidades para o futuro, balanceando os benefícios e custos do transporte individual e coletivo.
“Os custos indiretos do transporte individual são enormes e impactam a dimensão social, ambiental e humana. A quantidade de pessoas que morrem de maneira banal no trânsito é indecente, sem falar dos congestionamentos, em que três SUVs, ou às vezes apenas dois, ocupam o espaço urbano de um ônibus. Temos a questão das doenças respiratórias pela poluição. E na questão social, temos uma parcela grande de pessoas que não tem como se mover nas cidades hoje, pelo custo do transporte”, defende.
O pesquisador sustenta que beneficiar apenas uma parcela da população com tarifa zero é uma burocracia desnecessária, pois implica em custos de vigilância e controle para verificação. Por isso defende que o modelo de universalidade previsto no SUM é a melhor opção, tal como o SUS.
“O carro é uma ferramenta muito útil e quem quiser poderá usar. Mas é preciso arcar com os custos coletivos dessa opção”, acrescenta. Além da questão climática, o novo marco legal determina que o transporte público urbano seja organizado em articulação com as políticas de desenvolvimento urbano e regional, de habitação, de segurança viária e de segurança pública, entre outras.
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