• Carregando...
Por duas vezes Alceu esteve preso na Penitenciária do Ahú, hoje desativada. A primeira condenação se deu por vandalismo; a segunda, por não ter se apresentado no período da liberdade condicional. | Brunno Covello/Gazeta do Povo
Por duas vezes Alceu esteve preso na Penitenciária do Ahú, hoje desativada. A primeira condenação se deu por vandalismo; a segunda, por não ter se apresentado no período da liberdade condicional.| Foto: Brunno Covello/Gazeta do Povo

A vacuidade e a monotonia tornavam os dias tediosos e a rotina seguia bocejante. Guaratuba contava 20 mil habitantes e as perspectivas não eram muito animadoras. Alceu trabalhava à noite na panificadora e só ia dormir quando a cidade começava a despertar. Descansava até o meio-dia, almoçava no trabalho e à tarde se dirigia à praia ou à delegacia para jogar conversa fora com o policial de plantão. Por volta das 16 horas chegava à escola e estudava até às 20 horas. Às vezes saía direto para o trabalho, outras vezes ia jogar futebol de salão na cancha ao lado da Igreja Matriz até às 23 horas.

4 - Quatro meses na solitária

-Hum! Acho que já ouvi falar de você – disse o delegado Henrique Alexandre Medina ao colocar os olhos no papel sobre a mesa

Leia a matéria completa

As amizades da escola pareciam uma boa alternativa ao marasmo. Os novos amigos fumavam maconha. Alceu nunca quis experimentar. Resistia às provocações. Muitas vezes, de cabeça feita, o grupo saía pela praia promovendo desordens. Alceu ponderou as consequências e evitou-os por um tempo. Mas os encontros eram inevitáveis nos corredores do colégio.

O assédio era demais. Volta e meia os colegas apareciam com alguma curtição. Estavam todos de acordo, atraídos pelo mistério do desconhecido e pela aventura. O plano da hora era invadir a lanchonete de Ingrid Indian, no pé do Morro do Cristo, no Brejatuba. Sabiam andar pelas ruas com o sigilo das ratazanas, pois desde criança haviam se exercitado em perseguições para ter com o que ocupar o tempo.

Havia uma intuição a dizer para Alceu que essa excursão noturna não resultaria em boa coisa, mas o desafio mexeu com os brios. As provocações puseram em relevo a impetuosidade adormecida. Se soubesse o que o esperava, decerto não iria, porque essa impetuosidade significaria que seria projetada a magotes uma sucessão de acontecimentos que redefiniriam seus rumos dali em diante.

A horas tantas, seis pares de olhos emboscados entre muros observavam atentos o alvo. Não se via ninguém na rua. Obedecendo ao sinal do líder, partiram para o ataque. Arrebentaram a porta da lanchonete. Comeram e beberam até não poder mais. O álcool alterou os ânimos e começaram a quebrar o que viam pela frente. Sem beber, Alceu mais assistia do que participava. Sabia que daria alguma consequência. E deu.

A polícia já os aguardava do lado de fora quando tentaram dar no pé. O delegado era do tipo esperto. Sabia que podia fazer as coisas de tal modo que a culpa recaísse sobre um apenas que viesse a carregar a culpa de todos.

Com frequência os delegados, para dar provas de astúcia, fazem seus arranjos para concluir um inquérito mesmo que à custa de um bode expiatório. Alceu estava ao dispor. Enquadrado no Código Penal, ficou à disposição da Justiça. No aniversário da cidade, 29 de abril de 1978, o juiz da Comarca, Edgar Winter, esteve na delegacia e prometeu analisar o caso “com carinho”. Não o fez. No início de maio, Alceu foi recambiado para Curitiba.

Na Penitenciária do Ahú, o corredor era longo e sombrio. Todos aqueles homens, encarcerados feito bichos, assemelhavam o lugar a um circo de horrores. Agitavam as mãos entre os vãos das grades a cada novo detento conduzido pelo corredor, emitindo gritos selvagens iguais a rosnados de feras enjauladas. Feito bestas, viam-no como carne fresca.

Réu primário, ficou no xadrez 104 da primeira galeria. A tímida janela dava vista para um amplo pátio retangular, ao redor do qual se erguia feito muralha um edifício de alvenaria de quatro pavimentos. Lembrou-se do seminário. Agora, porém, não se tratava de crianças confinadas como advertência, mas de homens aprisionados à chave.

Você vai direto para a cela-forte. Vai ficar lá quatro meses e, se tiver bom comportamento, vai subir para o fundão da quinta, onde vai ficar mais dois meses. Só depois vai para o convívio. Isso é para você aprender a respeitar os funcionários e saber que não está em casa.

Altamiro, chefe da carceragem avisando Alceu sobre o tempo que teria de ficar na solitária.

Faltava pouco para o fim de 1979 quando Alceu foi chamado ao fórum da comarca de São José dos Pinhais. Receberia o direito à liberdade condicional do juiz Edgar Winter, o mesmo que o condenou por vandalismo. Na Vara de Execuções Penais, o juiz Edson Ribas Matachini fez as recomendações de praxe. Teria de arrumar emprego com carteira assinada em 30 dias e se apresentar uma vez por mês ao fórum para carimbar a carteirinha que tinha acabado de receber.

Não seria dessa vez que se prestaria ao papel de gado tangido. Rasgou a carteirinha e o alvará de soltura em mil pedaços, atirando os restos no lixo. Nunca iria se apresentar e tampouco portar documentos que provassem sua condição de ex-presidiário. Dirigiu-se à rodoviária de Curitiba. Embarcou para Paranaguá.

Dormiu na casa da mãe. Conversou com o padrasto e com as meias-irmãs Marli, Marisa, Sueli, Tânia e Jurema. No outro dia, embarcou num ônibus para Praia de Leste, a 30 km dali. Na penitenciária os irmãos Vítor e Sérgio Luís Anderete, recolhidos por porte de maconha, disseram que um velho amigo de Guaratuba tinha acabado de abrir um restaurante em Praia de Leste. Jorge, o amigo em questão, o contratou como auxiliar de serviços gerais. Alceu instalou-se num quartinho nos fundos do Restaurante Gamela sem revelar sua condição de ex-presidiário.

Num sábado, meados de dezembro, Alceu e Jorge jogavam futebol na praia central de Guaratuba quando a partida foi ganhando em violência. O goleiro do time visitante, Gersinho, se desentendeu com um dos adversários e os dois se atracaram. A briga se espalhou. Outra vez o azar o acertaria com força redobrada. Perto da trave, Alceu sentiu uma pancada na cabeça.

Após 40 dias entre a vida e a morte na Unidade de Terapia Intensiva, os médicos da Santa Casa de Paranaguá ponderaram as sequelas. Alceu ficaria paraplégico ou teria problemas neurológicos. A sorte enfim compareceu. Saiu inteiro, embora tivesse de passar o resto dos dias com uma bala alojada na cabeça por obra de um antigo colega de escola, o Orelhinha. Passou a acalentar a ideia de voltar a Guaratuba para dar uma boa surra no maldito.

Em visita à casa da mãe, reencontrou os sobrinhos gêmeos Ivo e Ivonaldo, de 10 anos, filhos de Maria. A Rádio Difusora anunciava o jogo do Rio Branco com o Operário Ferroviário, de Ponta Grossa. Tinha dinheiro para levar só um deles.

Alceu e Ivo se instalaram no alambrado do Estádio Nelson Medrado Dias. Desde o início, a partida mostrou-se agressiva. O zagueiro do Rio Branco, Ditão, um estivador negro e forte, deu uma entrada violenta no ponta-direita do Operário, Paulinho. Estabeleceu-se a confusão. Briga generalizada, polícia no gramado. O árbitro expulsou dois de cada lado. Pelo Rio Branco saíram Ditão e Polaco; pelo Operário, Tairzão e Marcelo. O jogo prosseguiu e com menos gente em campo deu para prestar mais atenção nos que restaram.

– Olha, tio, aquele número 7 do Operário não é o tio Paulinho? – perguntou Ivo.

Alceu passou a olhá-lo com atenção. Era mesmo o irmão que não via desde que se mudou para Guaratuba. Mais forte e com cabelos longos, Paulinho se assemelhava a um lutador romano. Veloz e habilidoso, dava trabalho aos defensores do Rio Branco e, por causa disso, era o mais visado. No intervalo, Ivo e Alceu gritaram para Paulinho, que foi até eles no alambrado. Mal puderam se cumprimentar, pois o jogador precisava ouvir a preleção do treinador. Combinaram uma conversa para depois da partida.

No segundo tempo o jogo ficou mais violento, resultando numa batalha campal. O árbitro encerrou a partida antes do tempo, com a vitória do Operário por 4 a 3, deixando mais revoltados os torcedores do Rio Branco. A equipe adversária teve de deixar a cidade escoltada pela Polícia Militar. Era julho de 1980 e, nessas circunstâncias, Alceu viu o irmão pela última vez. Emendou uns dias a mais de folga para pôr em dia umas questões pendentes em Guaratuba.

O disparo na cabeça não deixou sequelas físicas nem neurológicas, e sabia que Orelhinha morava no Brejatuba, perto da Praça dos Paraguaios. Encontrou uma casa vazia e invadiu. Havia apenas uma cama sem colchão, um sofá velho e alguns armários. Saiu à procura de uma mercearia para comprar alimentos. Encontrou um mercadinho, onde foi visto, seguido e preso. Detido por invasão de domicílio, a polícia não tardaria a descobrir que estava devendo cadeia por não ter se apresentado quando em liberdade condicional.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]