Di Cavalcanti explorou em sua pintura aquilo que há de mais tipicamente popular em sua cidade natal, o Rio de Janeiro. As linhas, formas e cores de suas telas saíam do samba, da vida dos favelados, da sensualidade das mulatas, das prostitutas. Tornou-se, assim, um artista muito brasileiro, hoje reconhecido pelos acervos dos museus mais prestigiados do mundo.
As vivências de Di Cavalcanti incluíam letrados e analfabetos, operários e políticos, malandros e diplomatas. Freqüentava e se inspirava nas gafieiras, festas de rua no subúrbio carioca e nas areias de praia. Entre os intelectuais, preconizava o novo. Idealizou a Semana de 1922, que colocou a arte do Brasil no rumo do modernismo. Depois, revoltou-se e conheceu no exílio os pintores Matisse e Picasso e o compositor Eric Satie.
Escreveu dois livros de memórias, além de poesias e crônicas. E se dizia frustrado por não ter entrado na Academia Brasileira de Letras. Manteve-se contrário ao abstracionismo até o fim da vida, em 1976.
Seria o interesse no homem, talvez mais do que em qualquer outra coisa, o denominador comum entre a obra e o homem Di Cavalcanti? Uma reposta pode estar na mostra Emiliano Di Cavalcanti, que abriu terça-feira passada na Pinakotheke Cultural, em São Paulo, em memória dos 30 anos da morte do artista.
A exposição propõe-se a mostrar as múltiplas facetas do artista não apenas "o pintor de mulatas", mas também o designer de jóias, o ilustrador e o poeta. "Os visitantes poderão testemunhar a obra de um grande pintor brasileiro, que produziu muito entre os anos 20 e 60. Além disso, suas caricaturas, auto-retratos, paisagens e representações do folclore brasileiro, do carnaval, do samba, além de suas musas e amores", explica o curador Max Perlingeiro.
Entre os destaques, está a tela "O Nascimento de Vênus", pintada em 1940 na fazenda da modernista Tarsila do Amaral, onde Di Cavalcanti se refugiou depois de voltar da Europa. "Esse é um verdadeiro ícone da pintura brasileira, em contraste à 'Vênus', de Botticelli", diz o curador em referência à obra do artista renascentista. Outro destaque é uma natureza morta pintada na década de 40, em São Paulo, tendo a arquitetura paulistana como pano de fundo, em contraposição a uma natureza morta similar realizada no Rio de Janeiro, na década de 30. Também foi dada atenção às ilustrações que o artista deixou em livros, e às poesias, que podem ser ouvidas na voz de Salomão Schwartzman dentro do espaço expositivo.
Leituras
No catálogo lançado pelo evento, há reproduções das 120 obras que integram a mostra e textos assinados por Perlingeiro, pelo acadêmico e bibliófilo José Mindlin e pelo poeta Ferreira Gullar. "Se nas figuras da mulher da alta sociedade o encanto feminino se manifestava na discrição e no recato, na da mulher do povo, ela se explicitava precisamente na esponteneidade e na franca sexualidade. Na exaltação da beleza mestiça está embutido o resgate de um valor humano que o preconceito e a discriminação desconsideraram", escreve Gullar.
Para o poeta, Di Cavalcanti se identificava com as classes pobres e com marginais, que, por tudo que representavam, opunham-se às classes dominantes. Nessa escolha de temas, reside uma qualidade particular do artista carioca que o diferencia de seus contemporâneos, como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral.
Perlingeiro, por sua vez, reavalia a noção de Di Cavalcanti como "um artista que produziu demais". "A sua produção era inerente à forma de viver. Ele fazia a pintura como se consumisse oxigênio. Não produzia aleatoriamente as obras. Era um pintor que, no início da carreira, mantinha um certo cuidado, até porque ele não tinha domínio da técnica, para depois fazer trabalhos mais livres", afirma o estudioso. O que parece indubitável é a grandeza do artista no legado da arte brasileira.
Serviço: Emiliano Di Cavalcanti. Pinakotheke São Paulo (R. Ministro Hungria, 200, São Paulo), (11) 3758-5202. De segunda a sexta-feira, das 10 às 20 horas. Até 16 de dezembro.
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