Detetives são durões? Prefaciando O Longo Adeus (1953), de Raymond Chandler (1888-1959), o crítico e escritor José Onofre afirmou que o autor "sempre soube (...) que seu detetive Philip Marlowe era um sentimental e um perdedor". Onofre ainda acrescenta que nesse romance "Marlowe mergulha na pior das condições que podem envolver um profissional: está pessoal e emocionalmente envolvido no centro do caso."
A descrição e o modus operandi são os mesmos de um outro detetive, criado pelo romancista e cineasta Tabajara Ruas. Mas há uma diferença: o escritório do investigador particular de Chandler era em Los Angeles, enquanto Hermenegildo da Silva Spiguetta, codinome Cid Espigão, opera a partir de Porto Alegre e, brasileiramente, sempre se envolve.
Já foi assim em A Região Submersa (lançado em Portugal, em 1978), sua primeira aventura, quando foi contratado apenas para encontrar um jovem desaparecido, mas se inseriu na resistência armada à ditadura militar e chegou a descobrir uma inquietante condição no marechal-presidente. Em verdade, Espigão fez uma jornada iniciática da inconsciência à compreensão das engrenagens da sociedade e ao movimento para mudar algo nessas engrenagens. Adquiriu uma nova visão: "Era intuía mais que sabia a última vez que contemplava a cidade com seus antigos olhos. Estava em gestação silenciosa e dolorida dentro de si uma outra maneira de ver".
Pelo contexto histórico-social, o leitor percebe que isso acontece no Brasil dos anos 1970. No texto de O Detetive Sentimental, a nova aventura de Espigão, há uma marcação precisa 1987. E uma descontinuidade: não se faz qualquer menção à conscientização política pela qual o personagem passou.
Uma década transcorreu e o herói está em uma outra existência, mais precária: carente de clientes, sobrevive como segurança de uma boate. Entra na confusão quando decide dar uma mãozinha para que um rapaz embriagado o bêbado mais educado que já viu possa embarcar no seu Rolls Royce Silver Wraith.
Como que cumprindo a máxima de que os vampiros só chegam quando convidados, Espigão é tragado pela voragem da aventura, é seqüestrado para os subterrâneos de Porto Alegre e depois, seguindo pistas, vai para o Pantanal Mato-Grossense, Los Angeles e Acapulco, para retornar a Porto Alegre. Descrevendo esse longo arco pelas Américas e defrontando-se com o poder corrosivo do dinheiro (talvez a sua nova aprendizagem), ele vai encontrando uma fauna um tanto variada e, por vezes, feroz: entre outros espécimes, o filho de um milionário, estranhas seqüestradoras carecas, um caboclo fantasiado de Capitão Marvel, um ditador latino-americano que lembra tanto o coronel Kurtz, de Apocalypse Now, como o monstruoso gângster Jabba, que escravizou a princesa Léia na série Guerra nas Estrelas. Há algumas mulheres, e Espigão se envolve com as mais fascinantes. E também encontra nomes e personagens que migraram da trama de O Longo Adeus Terry Lennox, Cisco Maioranos, Randy Starr.
Uma das interpretações possíveis para O Detetive Sentimental é considerá-lo uma reescrita do romance de Chandler. Claro que estamos falando de intertextualidade (recurso legítimo, usado desde que existe literatura) e não de cópia. De mais a mais, o romance de Tabajara Ruas não se resume a isso, pode ser lido de maneira independente.
Explicitando a intertextualidade, a primeira página de O Detetive Sentimental é uma paráfrase da primeira página de O Longo Adeus e, quando Espigão já está no cerne de sua busca da verdade sobre seu cliente Cisco Maioranos Júnior, há entre os dois detetives da história o velho californiano e o gaúcho de idade indefinida uma conversa que evidencia o diálogo entre as duas obras: "Conheci Terry Lennox por acaso. (...) Um bêbado cordial, vamos dizer assim. A primeira vez que eu o vi ele estava completamente bêbado, saindo de uma boate, sem conseguir entrar no carro. Tive pena e dei-lhe uma mão./ A primeira vez que vi Júnior ele estava completamente bêbado, saindo de uma boate, sem conseguir entrar no carro. Também tive pena dele."
Além de explicitar a filiação ao chamado romance noir, essa nova aventura ainda filia Cid Espigão apesar de fazer isso lateralmente à tradição gauchesca de outros personagens do autor, como o histórico general farroupilha Antônio de Souza Netto, de Os Varões Assinalados (1985) e Netto Perde sua Alma (1995), e o fictício Juvêncio Gutierrez, de Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez (1991). E isso se faz por intermédio do grande tio Chinão, "maior ainda pelo chapéu negro de abas largas a encimar-lhe a cabeça. Usava lenço de seda vermelho, colete escuro, guaiaca com enfeites de prata, bombacha e botas. O rosto queimado, picado de bexiga, era ornamentado por um bigodão retorcido, grisalho, amarelado pela fumaça do palheiro". Peão de estância, sempre munido de adaga e boleadeira, tio Chinão é o vínculo do citadino Cid com o mundo campeiro, a fronteira onde nasceu. Em um momento em que é o próprio Espigão o narrador, ele diz textualmente: "Apesar de gaúcho da fronteira, a única vez que montei num cavalo foi aos seis anos de idade, num parque de diversões".
E se em A Região Submersa havia menção aos escritores gaúchos Mario Quintana (1906-1994) e Erico Verissimo (1905-1975), marcando um apego às letras do Rio Grande do Sul, em O Detetive Sentimental o narrador chega a transcrever algumas linhas do uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994), grande influência na linguagem e na atmosfera ao longo da romanesca de Tabajara Ruas.
Por tudo isso, temos duas aventuras nesse novo romance de Cid Espigão: a investigação do detetive, com suas constantes e muitas vezes tragicômicas peripécias, e a aventura literária em que o autor ata pontas até agora soltas de sua obra e vorazmente mistura influências tanto de outros escritores como do cinema B e as histórias em quadrinhos. Formas de comunicação que Tabajara Ruas consome e produz.
* * * * * *
Serviço
O Detetive Sentimental, de Tabajara Ruas. Record, 446 págs., R$ 52.
Renato Bittencourt Gomes é mestrando em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná com dissertação sobre a obra de Tabajara Ruas.
Moraes derruba sigilo da delação de Cid e notifica citados em denúncia da PGR
Bolsonaro será preso? Acompanhe o Entrelinhas e entenda o que pode acontecer após denúncia da PGR
Em denúncia, PGR afirma que Bolsonaro era do “núcleo crucial” de organização criminosa em suposto golpe
Múcio diz que denúncia da PGR serve para livrar militares de “suspeições equivocadas”